Um dia com Márcia Haydée

Nosso encontro é meio às cegas. Eu sei quem é Márcia Haydée, mas ela não tem a menor ideia sobre mim. Às 8 horas em ponto, a grande dama do balé está no salão de um hotel no Paraíso, região central de São Paulo, para nosso café da manhã. Eu a avisto, solto um sorriso e ela retribui para em seguida dizer: “Nunca como nada pela manhã. Hoje será uma exceção.” De fato, Márcia se alimentou pouco – uma fatia de melão, outra de mamão e uma rasa porção de ovos mexidos.

Ela está em São Paulo para a montagem de sua versão de Dom Quixote, balé criado em 1869 por Marius Petipa para o Balé Bolshoi, em Moscou, baseado na obra de Miguel de Cervantes. O Sonho de Dom Quixote é a primeira coreografia de Márcia para uma companhia brasileira, a São Paulo Companhia de Dança (SPCD). “Na versão original, Dom Quixote é um velho louco e especial. Na minha, ele é jovem, alto, bonito. Já nasceu com a capacidade de viver. É uma peça alegre.” O balé narra as aventuras de Dom Quixote e seu amigo Sancho Pança, e o encontro entre os personagens Kitri e Basílio, que vivem uma história de amor.

Outras pessoas se juntam a nós. O uruguaio Pablo Aharonian é assistente de palco de Márcia. É ele quem escreve e desenha cada sequência da peça. Hélio Eichbauer, outra lenda do teatro, assina a cenografia e traz em sua bagagem trabalhos memoráveis, como a ambientação da antológica montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada em 1967 pelo Teatro Oficina, com direção de José Celso Martinez Corrêa. Inês Bogéa é a diretora da SPCD e quem trouxe Márcia para São Paulo. A ideia é seguir para Itaquaquecetuba para ver como anda a produção cenográfica – no caso de Márcia, pela primeira vez.

Os enormes painéis de tecido que reproduzem a série de desenhos a lápis de cor de Dom Quixote, feitos por Candido Portinari, cujos direitos foram cedidos por João Candido Portinari, emocionam Márcia. Ela quer tirar fotos, vê-los mais de perto. Na sequência, se preocupa com todos os outros detalhes do cenário. “Será que o bailarino vai conseguir saltar com esse degrau? Alguém pula de onde ela imagina a cena e garante que dará certo. Márcia quer ainda “sentir” cada elemento cenográfico: o carrinho de mão, o buquê de flores, os pães falsos, o moinho que se move manualmente.

Na volta ao centro de São Paulo, Márcia começa a falar de sua vida. Conta que deve sua ida para a Europa à atriz Bibi Ferreira, que trabalhou com o diretor Michael Powell, de Os Sapatinhos Vermelhos (um dos melhores filmes sobre dança, segundo Márcia), e os apresentou. “Depois de um mês desse encontro, recebi o convite do Royal Ballet de Londres. Saí daqui como profissional e tive de me adaptar na Inglaterra porque era outro ritmo.”

“Dançar não é uma atividade sacrificante. As pessoas pensam que é porque veem as bailarinas ficarem na ponta dos pés. Mas, para mim, sacrifício seria não dançar

A temporada não durou dois anos e Márcia partiu para Paris a fim de entrar na companhia do Marquês de Cuevas. “Imagina, cheguei lá e não havia lugar para mim, precisava esperar uma vaga. Nessa espera, engordei. Quando o marquês me chamou, queria me dispensar por causa do peso. Mas eu o convenci de que aquela situação não era justa.” Foi nos anos 1960 que Márcia deu o salto mais importante de sua carreira, unindo seu talento ao do coreógrafo John Cranko no Balé de Stuttgart, na Alemanha. Ao lado dele, dançou criações que marcaram época – A Megera Domada, Romeu e Julieta, Carmem. Seu grande partner foi Richard Cragun. “Fomos casados por 16 anos e dançamos juntos 36. Com Ricky, não tinha medo de fazer nada. Tinha total confiança nele.”

Com a morte precoce de Cranko, em 1973, Márcia assumiu a direção do balé de Stuttgart, cargo que ocupou até 1996. Há 12 anos, ela está à frente do Balé de Santiago, no Chile. Ela avisa: “Minha casa é em Stuttgart. Mas sempre gostei muito de viajar”. É fato. Antes de desembarcar em São Paulo, Márcia, de 78 anos, tinha estado na Bélgica e no Chile. Depois da estreia no Brasil, volta a remontar A Bela Adormecida com uma companhia belga. No Balé de Santiago, deve ficar até 2017. O futuro? “Penso, todos os dias, que o melhor ainda está por vir.”


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