Em 1998, cerca de quatro anos após fugir de casa para morar na rua, José de Abreu Neto se envolveu em uma briga “de território” e levou uma facada no coração. Desde que se afastara da família, aos 23 anos, o jovem havia se tornado usuário de crack e, naquela noite, estava também alcoolizado. “A cachaça trazia o monstro”, diz ele, que parou com a bebida ainda naquela época. Após sobreviver à facada, ser operado e voltar para as ruas, Abreu percebeu que precisaria de alguma assistência durante o período de recuperação. “Então eu conheci um carroceiro que me ajudou, e eu ajudava ele a separar materiais para reciclagem”, conta ele, hoje aos 45 anos. “Um dia apareceu um livro que não tinha valor comercial, porque era de papel-jornal, e eu decidi não rasgar. Resolvi pegar para ler.” O livro era A Revolução dos Bichos, de George Orwell, e ali começou a intensa jornada de José no universo da literatura, que dura até os dias de hoje.
Fragilizado pela vida precária, pela dependência química e pelo processo cirúrgico, o morador de rua encontrou em Orwell caminhos para analisar o mundo e suas contradições: “Me ajudou a compreender as forças antagônicas, os interesses de classe, os conflitos de interesse. E a partir dos princípios daquele livro eu fui procurando outros”. Após a primeira leitura, vieram mais obras do mesmo escritor, 1984 e Dias na Birmânia, seguidas de romances clássicos como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. “Laranja Mecânica, do Anthony Burgess, foi muito chocante para mim, mesmo eu sendo morador de rua e estando acostumado com a violência”, conta Abreu, que estudou apenas até o fim do ensino fundamental, em escolas públicas paulistanas.
Para encontrar as obras, Abreu contou, inicialmente, com a ajuda de um livreiro: “Eu não tinha muita ideia do valor dos livros, e o camarada do sebo me ajudou nessa parte. Explicou que tem livro que é obsoleto, tem livro que você vai ler e aprender um pouco, tem outros que são mais específicos”…Vieram então os clássicos da literatura brasileira, como Machado de Assis, José de Alencar e os modernistas. “Morei muito tempo na Praça Dom José Gaspar, ao lado da Biblioteca Mário de Andrade, porque eu tinha um carinho especial pela obra desse escritor e poeta. Dormindo ali eu sentia que participava, de alguma forma, de tudo que estava guardado na biblioteca.”
Com o passar dos anos, o morador de rua decidiu buscar leituras teóricas, mais desafiadoras. “Eu costumo dizer que a gente procura ir por níveis. Primeiro uma leitura mais acessível e dinâmica. Aí você vai se habituando e percebe que aquele exercício mental já não está te forçando, e que você está estagnando. Aí sente vontade de algo mais.” Descartes, Nietzsche e Schopenhauer, entre outros, passaram pelas mãos de Abreu. No momento, ele está lendo Armas Silenciosas para Guerras Tranquilas, de Noam Chomsky. “Com os teóricos comecei a entender melhor o que os escritores dos romances queriam transmitir através daquelas alegorias, máscaras e maquiagens. E um dos escritores que me ajudaram nisso foi Voltaire. E eu tomei como ponto de partida aquela frase dele: ‘A minha curiosidade enganada é sempre insaciável’.”
Trajetória e dependência
A história de vida de José de Abreu Neto daria um livro – ou mais de um – e ele parece saber disso. Ele está, inclusive, começando a colocar no papel algumas de suas experiências e pensamentos. “Se você me visse na calçada nunca iria imaginar que eu tenho tanto conteúdo, né? Mas nobreza não tem nada a ver com dinheiro. Chaplin já disse que a gente costuma julgar as pessoas pela aparência, mas que o tesouro não está nela”, diz ele, que é beneficiário desde 2014 do programa De Braços Abertos – criado pela Prefeitura de São Paulo para atender os usuários de crack do centro da cidade. Durante os últimos 22 anos, desde que saiu de casa brigado com a família, Abreu nunca deixou de usar a droga, mas diminuiu a quantidade. “Eu fui tirado da escola para trabalhar, para sustentar a casa, e não me deixavam nem estudar à noite. Eu não tinha espaço, não tinha conversação”, explica. “As drogas vieram na rua. Eu estava muito deprimido e sem suporte porque, por mais que em casa não fosse bom, quando eu saí deu um vazio…” E ele completa: “Teve momentos em que pensei em desistir, que achei que não valia a pena. Às vezes parece tentador chutar o pau da barraca, se destruir. Mas até esses momentos me ajudaram. O confronto consigo mesmo ajuda, é importante”.
Poucos anos após parar de beber e se recuperar da facada – quando já era um leitor assíduo –, descobriu um câncer que, mais uma vez, o levou a uma rotina hospitalar entre 2001 e 2002. “O câncer foi uma lição. Quando o médico tirou o tumor, senti que ele estava tirando coisas ruins de dentro de mim. Amargura, tristeza… Senti que estava me purificando. Para mim o tumor foi como se condensasse em um só lugar tudo de ruim que eu tinha, ou pelo menos uns 70%, porque a gente nunca fica puro.” Recuperado e mais uma vez de volta às ruas, Abreu tentou estabelecer um tipo de política pessoal de redução de danos. “Sou dependente químico. Acho que com uns cinco anos de uso percebi que eu era como uma pessoa que tem pressão alta. Porque eu desequilibrei o meu organismo, alterei um comportamento natural. E ninguém colocou na minha boca, eu que fui atrás, tenho que me responsabilizar por isso. Então depois do câncer eu comecei a controlar… Para que usar tanto? Até porque o que vale é o primeiro trago, a primeira bancada, depois você só corre atrás de uma sensação que não vai mais ter. E quando eu percebi que podia usar menos, podia não perder horas de sono e acordar melhor no dia seguinte, consegui diminuir.”
Antes mesmo de entrar no De Braços Abertos, que dá a ele uma vaga em um hotel, um trabalho como assistente e a possibilidade de fazer outras atividades – “gosto muito de origami” –, Abreu já havia regrado sua vida e passado a agir a partir de valores bastante claros e definidos. Para conseguir o dinheiro que precisava, trabalhou muito tempo como catador de materiais recicláveis, o que permitia pagar as refeições e a droga de todos os dias. “Eu procurei ver o quanto precisava para sobreviver e o quanto de material eu precisava catar para isso, sem ter que amolar ninguém, sem pedir nada. Eu tenho 22 anos de rua e nunca fui preso. Porque eu não dava trabalho. Não vou incomodar ninguém na porta de um restaurante porque estou com fome, nunca vou roubar de ninguém, nunca na vida roubei nada. Tenho meus valores”, diz Abreu. Se esses valores e tamanha consciência de sua situação têm a ver com a bagagem de leitura, ele diz não ter dúvidas. “Com os livros a gente vai adquirindo informações que vão sendo processadas… E todos nós sabemos: mente sã, corpo são. Quando a mente assimila um valor, você transfere para o seu dia a dia e para a sua conduta.”
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