Uma noite com Secos & Molhados

Filho do poeta e jornalista português João Apolinário, João Ricardo Carneiro Teixeira Pinto deixou a vida pacata em Arcozelo, no Porto, e cruzou o Atlântico aos 14 anos, fugindo do salazarismo. Estavam com os dias de liberdade contados: o pai como inimigo político, o filho com a perspectiva de servir ao exército do ditador. Ironicamente, chegaram ao Brasil João, o pai, a irmã e a mãe, três dias antes do Golpe de 1964. Em 1966, ele iniciou uma promissora carreira jornalística. Dois anos mais tarde, abandonou o emprego estável na TV Globo para se dedicar à música. Mal suspeitava de que suas canções tomariam de assalto ouvidos e bocas de milhões de brasileiros com o sucesso dos Secos & Molhados. O grupo bateu recordes ao unir uma música de qualidade a elementos bizarros, como a maquiagem carregada, as roupas e acessórios extravagantes e a figura andrógina e lasciva de seu vocalista.

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A despeito do enorme sucesso, divergências estéticas levaram a parceria entre Ney e João Ricardo a um breve fim. É o que defende ele, hoje, aos 62 anos, classificando como “mentiras absurdas” a versão recorrente de que motivos financeiros os levaram à separação. João ainda deu sobrevida ao grupo em outros três álbuns e seguiu sozinho, lançando nove títulos, o mais recente Chato-Boy, de 2011. Em 29 de março, ao lado do violonista Daniel Iasbeck, João se apresentará como Secos & Molhados no Cine Joia, em São Paulo. Na entrevista a seguir, que estreia a seção Diz Aí, João Ricardo fala sobre o despertar da paixão pela música, as escolhas estéticas dos Secos & Molhados, a turbulenta relação com o ex-amigo Ney e os improvisos na criação da célebre capa do álbum de estreia da banda.

“Meu pai teve de sair às pressas de Portugal, fugindo do Salazar, pois descobriu que seria preso pelo órgão de inteligência e repressão da ditadura. Também fugi, de certa forma, pois em pouco tempo seria recrutado para lutar na Guerra Colonial. Meu pai foi contratado para trabalhar no Primeira Hora e, na véspera dele ingressar no jornal, no dia 31, veio o Golpe Militar e havíamos saído de Portugal justamente para fugir disso. Eu ainda era muito jovem, tinha a noção exata do que estava acontecendo, mas adorei o Brasil, um país infinitamente maior que Portugal e com pessoas maravilhosas.”

“Eu tinha acabado de conhecer os Beatles na Europa e fiquei horrorizado ao saber que ninguém os conhecia no Brasil. Por influência deles, comecei a tocar violão sozinho e quebrei o violão inteiro, mas aprendi a tocar. Já fazia letras para um vizinho chamado Renato, que compunha muito bem, mas aprendi a tocar e comecei a compor. A maior parte das músicas do primeiro álbum dos Secos & Molhados compus com 16, 17 anos. A única que foi feita três ou quatro meses antes de gravarmos o disco foi Sangue Latino.”

“Meu pai foi editor do Última Hora e aos 16 anos decidi trabalhar lá. Aprendi a fazer jornalismo praticando jornalismo. Trabalhei depois no Diário Popular e fui convidado a ir para a Rede Globo para fazer o Jornal Hoje. Cobria artes e espetáculos e foi uma experiência divisora. Eu me aproximei de um universo que muito me interessava. A música era um mundo paralelo para mim e não tardou até que eu pedisse para me mandarem embora, pois sabia que teria algum dinheiro para ficar um tempo razoável preparando minha carreira. Se não desse certo, voltaria para o jornalismo.”

“A necessidade é a mãe da invenção e era a época das bandas progressivas, que tinham um aparato sonoro poderoso. Éramos o contrário disso: despojados musicalmente, mas tínhamos referências teatrais e começamos a inventar saídas para não perder terreno, como usar roupas extravagantes e maquiagem. Percebemos que quanto mais nos aventurávamos naquilo que era bizarro, mais as pessoas ficavam estupefatas e atraídas. Alice Cooper fazia sucesso, nos Estados Unidos, o David Bowie, na Inglaterra, e plasticamente levamos as ideias do glam e do glitter ao extremo. Tivemos a sorte de envolver em torno de nós milhões de pessoas de todas as camadas sociais, de todos os credos, cores e idades, algo que não aconteceu nem ao Bowie nem ao Alice Cooper.”

“Qualquer um que analisar com alguma profundidade o que fiz depois dos Secos & Molhados perceberá que não tenho nada a ver com o que o Ney se tornou. Nossa ruptura se deveu muito mais a essas diferenças. Houve mentiras absurdas sobre nossa separação, questões que não me interessam mais, mas a verdade é que nunca fui adepto daquilo que Ney pretendia fazer. Essa coisa estável de tratar a MPB como uma estatal, trabalhar como um burocrata e agir como um funcionário público, fazendo a mesma coisa por 30, 40 anos. Mas também é fato que Ney foi primoroso nos Secos & Molhados. Cantou minhas músicas como ninguém e nunca, ninguém fez isso melhor do que ele. Hoje, somos dois velhinhos e a memória afetiva das pessoas espera que ainda exista algo entre nós, mas não temos mais relações em nenhum nível. Fizemos algo irrepreensível, irretocável e fantástico, mas tudo isso é passado.”

“Tudo foi feito às pressas. Pedi emprestado ao meu cunhado dois cavaletes e um compensado de madeira e saímos correndo para comprar aquelas coisas todas que se vê sob a mesa. Naquela época não existia supermercado 24 horas em São Paulo, mas havia um, chamado Jumbo Eletro, que fechava à meia-noite em frente ao Aeroporto de Congonhas. Recortamos o compensado para poder colocar as cabeças sob a mesa e trabalhamos a noite inteira. O Antônio Carlos Rodrigues era fotógrafo do Última Hora e pedi a ele a gentileza de fazer as fotos da capa. Ele teve essa ideia e ela acabou se tornando uma capa clássica da música brasileira.”


Comentários

2 respostas para “Uma noite com Secos & Molhados”

  1. Avatar de lourival de nadai
    lourival de nadai

    João Ricardo, ano que vem Os Secos e Molhdos completa 40 anos, e esperamos uma homenagem completa com pelo ao menos todos os vacalistas que passaram por esse maravilhoso grupo até hoje.Queremos ver Ney, Lili Rodrigues, Cesar Lampé, Totô Braxil e você mesmo joão que também foi e é vocalista dessa maravilha.E olha, isso não é só um pedido, é uma ordem.Estamos esperando em CDs e vídeos. Não esqueça hein!
    Lourival de Nadai
    Marechal Floriano
    Esp. Santo
    03 de agosto de 2012

  2. CONHECI JOÃO PESSOALMENTE ERAMOS VIZINHOS, MAS EU NÃO SABIA QUE ERA O TAL JOÃO RICARDO DOS SECOS E MOLHADOS, ATÉ TERMOS A OPORTUNIDADE DE UM DIA A GENTE IR BRINCAR COM NOSSOS FILHOS E FALAR UM POUCO DESSE TAL ROCK N ROOL QUE EU AMO E QUE COMO DE BAGAGEM DE MEUS GOSTOS ESTARIA ESSA BANDA. ELE FALOU DE UMA BANDAS MARAVILHOSAS QUE COINCIDIRAM COM MEU GOSTO E QUE TEVE UMA BANDA QUE ERA MUITO ANTIGA E TALVEZ EU NÃO A CONHECERIA.PERGUNTEI QUAL ERA E ELE ME DISSE CONHECE SECOS E MOLHADOS? EU FIQUEI QUIETA ME PERGUNTANDO SERÁ QUE É O JOÃO RICARDO!!! SIM ERA ELE.EU QUASE CHOREI DE ALEGRIA POIS DISSE A ELE VOCÊ NÃO SABE O QUANTO ISTO ME DA ALEGRIA.DEPOIS DAÍ VIRAMOS AMIGOS ELE FREGUÊNTOU MINHA CASA AUTOGRÁFO MEUS DOIS DISCOS E ME DEU MAIS DOIS DE SUA CARRERA SOLO. T AMO JOÃO AQUI É SUA AMIGA SIMONE DIAS DE SÃO PAULO, BELA VISTA…VALEU A PENA…

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