Na nova edição da Carambaia, em capa dura, preta, o Dicionário do Diabo parece uma dessas bíblias do Velho Oeste, que freiam o impacto de uma bala certeira a milímetros do coração do mocinho. Em seu miolo, porém, a obra de Ambrose Bierce (1842-1913) está mais para o revólver que atira – não no mocinho, mas na prepotência humana, na ganância e no egoísmo, na estupidez e na covardia.
Nomeando os bois, seus alvos eram magnatas de ferrovias, armas e mineração, donos de jornais, como William Randolph Hearst, o “cidadão Kane”, para quem trabalhou por mais de dez anos, banqueiros e advogados, quando não médicos e religiosos. Basicamente todos aqueles que detinham o poder e abusavam de seus privilégios.
Herói na Guerra Civil Americana, onde recebeu um tiro na cabeça, Bierce conhecia bem a condição humana nas situações mais extremas. Jornalista, enxergava como ninguém os bastidores da corrupção, as injustiças contra pobres e negros, a desfaçatez dos políticos. Daí que começou a escrever estes verbetes diabolicamente engraçados e os foi engavetando ou utilizando em suas diversas colunas de jornal ao longo de décadas. Em 1906, finalmente, foram reunidos e publicados com um título mais afeito ao puritanismo de seus editores: Vocabulário do Cínico.
Cinco anos depois, veio a edição definitiva, já com o título pouco cristão (na verdade, Bierce admirava Jesus profundamente – o que ele não suportava eram as hipocrisias do cristianismo e demais religiões). Muitas das definições vêm acompanhadas de poemas que ele mesmo escrevia, assinando com pseudônimos hilários: Jared Oopf, Durang Gophel Arn, Jamrach Holobom, Aramis Jukes e, entre outros, padre Gassalasca Jape.
Chamado por um crítico de o mais puro dos misantropos, Bierce desapareceu no México por volta de 1913, provavelmente enquanto cobria a revolução de Zapata e Pancho Villa. Tinha mais de 70 anos. A seguir, uma breve seleção de sua verve ácida, na tradução excelente de Rogério W. Galindo.
Advogado: Alguém perito em achar brechas na lei.
Amizade: Um navio grande o suficiente para carregar duas pessoas quando há bom tempo, mas apenas uma na tormenta.
Amor: Insanidade temporária curada pelo casamento ou pela remoção do paciente das influências sob as quais ele contraiu a doença. Essa doença, como a cárie e muitas outras, só se encontra entre raças civilizadas que vivem em condições artificiais; nações bárbaras que respiram ar puro e comem alimentos simples gozam de imunidade contra seus ataques. Às vezes é fatal, mas com maior frequência para o médico do que para o paciente.
Barulho: Fedor na orelha. Música não domesticada. O principal produto e signo autenticador da civilização.
Batalha: Método para desatar com os dentes um nó político que não pôde ser desfeito com a língua.
Canhão: Instrumento utilizado na correção das fronteiras nacionais.
Casamento: O estado ou condição de uma comunidade composta por um mestre, uma amante e dois escravos, totalizando duas pessoas.
Chato: Aquele que fala quando você quer que ele ouça.
Cínico: Um canalha cuja visão defeituosa vê as coisas como elas são, não como devem ser. Daí o costume dos sicilianos de arrancar os olhos do cínico para melhorar sua visão.
Circo: Lugar em que cavalos, pôneis e elefantes podem ver homens, mulheres e crianças agindo como tolos.
Corporação: Instrumento engenhoso para obter lucro individual sem responsabilidade individual.
Deputado: Na política nacional, um membro da Câmara Baixa neste mundo, sem esperança visível de promoção no outro.
Desobediência: O lado positivo da servidão.
Diagnóstico: A previsão que um médico faz para a doença do paciente de acordo com seu pulso e seu bolso.
Dicionário: Maligno instrumento literário para limitar o crescimento de um idioma e torná-lo duro e inelástico. O dicionário, contudo, é obra muito útil.
Estrada: Faixa de terra pela qual se pode passar de um lugar onde é exaustivo ficar para outro aonde é inútil ir.
Fantasma: O sinal exterior e visível de um medo interior.
Garfo: Instrumento usado principalmente com o propósito de colocar animais mortos na boca.
Hábito: Algema para os livres.
Homem: Animal perdido no êxtase da contemplação daquilo que pensa ser, a ponto de negligenciar aquilo que sem dúvida devia ser. Sua principal ocupação é o extermínio de outros animais e da própria espécie, que, no entanto, se multiplica com insistente rapidez, infestando toda a Terra habitável e o Canadá.
Imaginação: Um depósito de fatos, de propriedade conjunta do poeta e do mentiroso.
Impunidade: Riqueza.
Longevidade: Extensão incomum do medo da morte.
Mitologia: O conjunto das crenças de um povo primitivo relativas à sua origem, ao início de sua história, seus heróis, deidades e assim por diante, em posição aos relatos verdadeiros que são inventados mais tarde.
Molho: Único sinal infalível da civilização e do esclarecimento. Um povo sem molhos tem mil vícios; um povo com um molho tem apenas 999. Para cada molho inventado e aceito, renuncia-se a um vício e ele é perdoado.
Noiva: Uma mulher com uma ótima perspectiva de felicidade em seu passado.
Oração: Pedido para que as leis do universo sejam anuladas em favor de um suplicante que confessa não ser merecedor.
Paciência: Forma menos grave do desespero, disfarçada de virtude.
Patriotismo: Lixo combustível pronto para ser posto sobre a tocha de qualquer ambicioso que queira iluminar seu nome. No famoso dicionário do dr. [Samuel] Johnson, o patriotismo é o último refúgio de um canalha. Com o devido respeito a um lexicógrafo esclarecido porém inferior, tomo a liberdade de sugerir que é o primeiro.
Raciocinar: Pesar as probabilidades na balança do desejo.
Religião: Filha da Esperança e do Medo, que explica à Ignorância a natureza do Incognoscível.
Repórter: Autor que adivinha seu caminho até a verdade e a dissipa com uma tempestade de palavras.
Sacerdote: Homem que assume a gestão de nossa vida espiritual como método de melhorar sua vida temporal.
Suficiente: Tudo que há no mundo, caso você goste.
Velhice: Aquele período da vida em que agravamos os vícios que ainda nos agradam, amaldiçoando aqueles que não temos mais a iniciativa de cometer.
Wall Street: Símbolo do pecado a ser repreendido por todo demônio. A crença de que Wall Street é um covil de ladrões serve de esperança a todos os ladrões malsucedidos de que eles podem ter lugar no paraíso.
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