O ator, diretor e dramaturgo carioca Daniel Lobo* parece seguir à risca a asserção de uma forte referência de seu teatro, o escritor francês Antonin Artaud (1896-1948), segundo a qual é impossível conceber “uma obra de arte dissociada da vida”. Em 2003, enquanto se preparava para viver um personagem à beira da esquizofrenia nos palcos, Lobo teve seu primeiro contato com a obra da psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999), conhecida por sua luta contra tratamentos psiquiátricos agressivos, entre eles eletrochoques e lobotomia. A médica foi tema de Nise – No Coração da Loucura, filme de Roberto Berliner que venceu o Festival de Tóquio, em outubro. Sua luta, a propósito, voltou à tona no mês passado, quando o governo nomeou para a Coordenação Nacional de Saúde Mental o psiquiatra Valencius Wurch, ex-diretor de um manicômio privado fechado em 2012 pela Justiça por denúncias graves de maus-tratos. A peça – Equus, de Peter Schaffer – acabou não sendo montada, mas, em 2008, o pioneirismo de Nise voltou a chamar sua atenção num artigo de jornal que falava dos dez anos da morte da médica.
Lobo então aprofundou suas pesquisas no Museu de Imagens do Inconsciente, instituição criada por Nise no então Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro, onde a psiquiatra implementou a terapia ocupacional com os pacientes em ateliês de artes plásticas. O primeiro resultado desse mergulho foi Nise da Silveira – Senhora das Imagens, um monólogo com música, dança e projeções, com a atriz Mariana Terra no papel de Nise, que teve 200 apresentações entre janeiro de 2011 e novembro de 2012. O segundo, Nise da Silveira – Guerreira da Luz, peça multimídia, com coreografia de Ana Botafogo e trilha de João Carlos Assis Brasil, ambos em cena. Nas duas encenações, havia ainda participações em vídeo de Ferreira Gullar e José Celso Martinez Corrêa. A última realizou 15 apresentações no Sesc Santana, em São Paulo, entre novembro e dezembro de 2012.
Apesar do sucesso, a imersão de Lobo, no entanto, ainda não havia chegado ao fim. “Eu empaquei. Tinha de desconstruir o projeto, precisava ‘ressignificá-lo’. Como a loucura é libertária, resolvi que eu seria a Nise”, diz Lobo, que em dezembro de 2013 se mudou para Florianópolis e repensou o espetáculo. “A parada foi importante para eu saber onde eu me espelhava na Nise e fazer com que sua pulsação reverberasse na plateia.”
Daí surgiu a terceira peça, Nise da Silveira – Guerreira da Paz, que estreia em 22 de janeiro no Auditório Masp Unilever, em São Paulo. O novo mergulho de Lobo envolveu uma busca pessoal por meio de práticas xamânicas e indígenas, como o ritual com o ayahuasca. “Há um fio tênue entre a loucura e a sanidade, algo que muitas vezes foi associado à espiritualidade. Artaud, que era uma referência para Nise, falava que ‘o ser tem estados inumeráveis’, e minha busca por outros estados foram laboratórios para lapidar o que prefiro chamar de performance, em vez de interpretação. Tenho a pretensão de que o público possa abstrair a figura masculina e ver Nise em cena”, afirma.
Já na entrada do teatro, Lobo traduz suas experiências, relaciona-as com o universo de Nise e as reflete no palco. Ouve-se uma percussão que soa como um mantra, com cantos guaranis ao fundo e a voz da Monja Coen. Num canto, já em cena, Lobo pinta um quadro diferente a cada noite. “Às vezes começo já do lado de fora do teatro, evocando Nise, buscando a concentração e o envolvimento da plateia, quebrando a quarta parede”, diz.
O canto indígena, explica Lobo, faz referência a um curioso capítulo da biografia de Nise. Aos 90 anos, ela recebeu a visita de Tsereté, um pajé xavante, no Dia das Mães, a ela apresentado pela antropóloga May Waddington, participante de um grupo de estudos dos ensinamentos do psiquiatra alemão Carl Gustav Jung (1875-1961), cujo trabalho ela divulgou no Brasil. O índio pedia que a psiquiatra aceitasse se tornar uma “mãe xavante”, cujo papel seria o de ficar ao lado de uma pessoa ou animar quem sofre, amá-lo, ajudá-lo, curá-lo. Sem filhos, mas conhecida por seu amor a felinos – chegou a lançar, em 1998, o livro Gatos, a Emoção de Lidar – , a médica aceitou o pedido e foi “coroada” com um cocar.
A passagem histórica não está aí à toa. “A peça não é biográfica, não é teatro realista. Mas tenho uma responsabilidade em relação à história de Nise da Silveira. As pessoas saem do teatro sabendo quem ela foi até sua morte, aos 94 anos, conhecendo os fatos que fizeram dela ser quem foi”, conclui.
*O ator Daniel Lobo morreu, em decorrência de um câncer, no dia 24/3, após a publicação desta matéria
Deixe um comentário