“A ciência escraviza os estudantes de pós-graduação”, diz Nobel de Medicina

O cientista Sydney Brenner, 88 anos, é um dos grandes nomes da biologia molecular, campo da ciência que ajudou a fundar. Formado em medicina e doutorado em química, optou pela pesquisa e trocou sua terra natal, a África do Sul, pela Inglaterra na década de 1950.  

No ano seguinte à sua chegada à Europa, foi visitar a Universidade de Cambridge, onde conheceu o cientista Francis Crick, um dos descobridores do DNA. A empatia entre os dois deu início a uma das parcerias mais profícuas e longas da ciência. Depois de se aposentar, Brenner foi trabalhar nos Estados Unidos e lidera projetos de inovação em Cingapura, na Ásia.

Nesta entrevista exclusiva, concedida no Hospital Israelita Albert Einstein durante uma breve visita do cientista ao Brasil, Brenner explica porque deposita suas esperanças nos jovens cientistas e como a burocracia está atrapalhando a inovação. Ele também sugere um novo modelo editorial para as publicações científicas.

O cientista Sidney Brenner
O cientista sul-africano Sidney Brenner, 88. Foto: Divulgação.

Saúde!Brasileiros: Por que o senhor foi procurar jovens talentos na Ásia?  

Sydney Brenner: Pessoas como eu trabalham onde podem e lutam para produzir algo. Em reconhecimento ao meu trabalho, ganhei um prêmio de Cingapura e também fui convidado a ser conselheiro na tomada de algumas decisões estratégicas. 

Queriam saber de que modo um país pequeno, ao lado da China e da Índia, poderia ter sucesso. Como os médicos de lá foram treinados na América e na Inglaterra e tinham um padrão muito elevado, vi que seria o lugar ideal para fazer pesquisa biomédica avançada.

Como essa iniciativa tomou forma?

Criamos dois novos laboratórios para jovens e um terceiro está em desenvolvimento. Um deles, inaugurado em 2000, é uma estrutura gigantesca que orienta a pesquisa e o desenvolvimento biomédico do setor público.

No ano seguinte, enviamos 1000 jovens cingapurianos para cursos de graduação e pós na América, Europa e em outros lugares do mundo. Houve um investimento de cerca de US$ 1 milhão de dólares de Cingapura em cada um deles. Na volta, trabalhariam cinco anos em troca do investimento feito em sua educação. Se quisessem desistir, precisariam pagar o que foi gasto na formação deles. 

E esses jovens já retornaram? 

Sim, começaram a voltar há seis anos. Mas nem tudo saiu como o planejado. Burocratas sedentos por dinheiro que geriam a maior parte dos recursos não queriam mais contratá-los como fora previsto. Felizmente, ganhei um pouco de dinheiro e pude contratar cinco deles para formar para uma iniciativa independente, uma empresa voltada para a engenharia de moléculas e tecnologia.  

O senhor fez duras críticas às estruturas de pesquisa, especialmente aos laboratórios americanos, em uma entrevista à revista eletrônica do King’s College, de Londres. Na Ásia é diferente?

Eu sou muito crítico ao modelo americano de fazer ciência. Ele está baseado em uma cultura que leva à escravidão dos alunos de pós-graduação. As pessoas que estão à frente dos laboratórios e os investigadores principais querem saber apenas como os alunos podem trabalhar para eles em suas respectivas pesquisas. Os jovens não conseguem investigar as suas próprias ideias. Na Ásia, meus alunos não trabalham para mim, trabalham por conta própria.

Digo a eles que podem fazer qualquer investigação que quiserem, desde que tenhamos os recursos. E nós temos ótimos recursos para ajudar esses jovens. Em Cingapura, também estou conseguindo o que tenho buscado há muitos anos, que é encontrar clínicos para trabalhar com profissionais da engenharia.

Eles estão juntos no mesmo lugar para encontrar os problemas que queremos resolver. Esse intercâmbio entre as pessoas as leva a fazer coisas novas, principalmente porque os jovens têm a vantagem de se arriscar em campos nos quais são ignorantes. Na ciência, isso pode ser bom. Eu fiz isso muitas vezes. 

De que modo a administração pode atrapalhar uma pesquisa?

Claro que a área precisa ser regulamentada, mas há regras demais. Hoje você não pode obter a colaboração de outro laboratório porque a conversa sempre começa por quem vai pagar a conta.  Sairá do seu orçamento ou é o meu? E há o risco de que a burocracia paralise as instituições com as suas cobranças de publicações e desempenho em cima dos indivíduos. 

Em Cambridge, onde dividi por mais de vinte anos o laboratório com Francis Crick, nunca permitimos que os administradores avaliassem um pesquisador. Os indivíduos eram nossa responsabilidade. Eles podiam avaliar o trabalho do laboratório como um todo. Isso evitava que taxassem este ou aquele de improdutivo porque não chegou a nenhuma conclusão ou não teve trabalhos publicados em cinco anos.

Na sua visão, quais são as consequências desse modelo?

No ambiente de pesquisa atual, em que se conta o número de publicações e os administradores controlam tudo, talvez eu e alguns colegas não tivéssemos feito as descobertas que nos levaram a ganhar o prêmio Nobel. Por exemplo, meu colega Fred Sanger, que ganhou dois prêmios Nobel, praticamente não publicou nada entre um e outro. Alguns administradores teriam dito que ele era improdutivo e provavelmente não receberia mais recursos para trabalhar.

Mas os administradores não precisam de dados como o número de estudos publicados e patentes para mostrar que a instituição está progredindo?  

Sim, mas eles também precisam saber que os grandes saltos na ciência levam um longo tempo para acontecer. Para que isso ocorra, você precisa ter melhores cientistas. Eles irão atrair pessoas melhores e se tornarão, eles mesmos, melhores ainda. E só assim a instituição tem chance de crescer. Leva uma geração para que isso aconteça. 

Mas há outros efeitos ruins dessa política. Hoje, os cientistas ganham reputação não mais pelo seu valor intrínseco, mas pelo valor atribuído a ele por alguma outra organização, que é a revista científica. Talvez essa mensuração seja boa para a média dos cientistas. Mas, como eu disse, pode ceifar talentos.

Qual será o próximo grande avanço na ciência?

Todos os alunos me perguntam isso. A grande fronteira é o cérebro humano. O grande avanço na compreensão do cérebro é o conhecimento de que ele é constituído por células que interagem entre si.

Atualmente, sabemos que o corpo tem um conjunto de entradas: olhos, ouvidos, músculos, intestinos, e todas elas convergem no cérebro. Então você tem que traduzir isso em um conjunto de saídas, que são as suas ações. Entender como esse sistema é integrado e como as decisões são tomadas é o grande mistério do cérebro.  

O que é necessário para fomentar a inovação na medicina? 

Ter em mente que nem todos os temas foram inventados ainda e pode haver muitos avanços tecnológicos. Isso acontece o tempo todo. Eles podem surgir de disciplinas inteiramente novas que estão por aparecer.  Por isso, os cientistas devem olhar para os limites do conhecimento, para aquelas áreas isoladas e inexploradas. 

Cientistas devem fazer política? 

Muito poucos têm feito isso, mas a resposta é sim. Eu acho que a política se beneficiaria da presença dos cientistas, porque o objetivo principal dos políticos é se reeleger, o significa objetivos de curto prazo por definição. E nós pensamos em mudanças a longo prazo. 

Qual é a sua recomendação aos jovens cientistas? 

Jovens, façam o melhor que puderem e sempre digam a verdade, sempre. Para os que atuam na área médica, preocupem-se com as pessoas, com a humanidade. Essa é a lição que todos devemos aprender.


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