Uma das grandes questões -e pesadelos- que rondaram a epidemia de zika no País foi a dúvida sobre se o vírus poderia ser o responsável pelas más-formações em bebês. Muitas perguntas foram levantadas: poderia a microcefalia ter como causa (ou fator associado) um larvicida usado na água para combater o Aedes Aegypti? Também o aumento no número das anomalias poderia ser explicado simplesmente por uma maior eficiência no registro desses casos? As más-formações foram causadas por lotes de vacina vencidos?
Com o tempo, aumentaram-se as evidências que associavam o zika às más-formações, principalmente pela extensão dos danos (mais profundos e mais comprometedores que a anomalia da caixa craniana). Mesmo assim, muitos cientistas relutavam em fazer uma associação direta. Talvez agora, após um estudo inédito publicado nesta quarta-feira (11) na prestigiada Nature (disponível aqui), especialistas se sintam mais à vontade para cravar uma relação de causalidade entre zika e microcefalia.
O método complexo utilizado pela pesquisa incluiu camundongos grávidas de diferentes linhagens, células cultivadas in vitro e clones de mini-cérebros humanos e de chimpanzés. Com tudo isso, o estudo reuniu evidências pesadas de que o vírus causa a microcefalia:
1) Os pesquisadores demonstram que o zika infecta fetos e “atrapalha” o seu crescimento dentro do útero;
2) Cientistas observaram que o zika foi a causa de sinais de microcefalia em camundongos infectados;
3) O estudo mostrou que o vírus infecta células do cérebro humano;
4) Pesquisa demonstrou também que o vírus não infecta células dos cérebros de chimpanzés, o que mostra ser a cepa brasileira “adaptada” para atacar somente células neurais humanas;
5) Os resultados também mostram que o zika atravessa a placenta e provoca a microcefalia atacando as células progenitoras corticais. Presentes nos estágios iniciais do desenvolvimento, essas células dariam origem à estrutura do córtex cerebral (região do cérebro responsável pelo pensamento abstrato);
6) Ainda, depois que atravessa a placenta, o zika mata as células do córtex por dois mecanismos: a apoptose, quando a célula se programa para morrer (o mesmo mecanismo que ocorre quando vamos envelhecendo, por exemplo); e a autofagia, processo complexo em que a célula morre pela digestão do seu conteúdo interno.
Há muito o que ser estudado, contudo. Uma das questões a serem observadas mais atentamente é que o vírus só causou má-formação em camundongos com sistema imunológico debilitado.
Para mais informações, Saúde!Brasileiros falou com o neurocientista brasileiro Alysson Muotri, pesquisador da Universidade da Califórnia em San Diego e um dos coordenadores do estudo publicado na Nature. O trabalho foi assinado por um time grande de cientistas, entre eles estão Patrícia Beltrão Braga, Fernanda Cugola e Isabella Fernandes, do Laboratório de Células-Tronco da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo.
Saúde!Brasileiros: Pelo estudo, podemos afirmar de fato que o zika é a causa da microcefalia?
Alysson Muotri: Correto, nosso trabalho mostra que o vírus zika circulando no Brasil é suficiente para causar microcefalia e outros defeitos congênitos. Propomos parar de chamar a condição dos afetados de microcefalia e sim falar “síndrome congênita do vírus zika”. Estamos diante de uma nova síndrome.
Saúde!Brasileiros: O experimento foi feito em camundongos. Ainda há brechas para dizer que a atuação pode ser diferente em seres humanos?
Alysson Muotri: A única forma de fechar 100% as brechas seria fazer o experimento em mulheres grávidas, o que é antiético.
Saúde!Brasileiros: Pode explicar melhor o desenho do estudo?
Alysson Muotri: Usamos duas fêmeas grávidas de cada linhagem de camundongo. Em uma delas [com o sistema imune mais deficiente], o zika conseguiu atravessar a membrana e causar defeitos congênitos nos fetos. Na outra, o zika não atravessou a membrana placentária e os animais nasceram ilesos.
Saúde!Brasileiros: De onde veio o zika usado no estudo? Qual a origem dele?
Alysson Muotri: O vírus foi isolado de uma criança com microcefalia que morreu logo ao nascer. Isso é importante pois usamos exatamente o agente causador e não uma outra linhagem viral, não relacionada aos casos brasileiros.
Saúde!Brasileiros: Podemos afirmar que a cepa é diferente da encontrada em 1947? De que maneira? Ela também é diferente do vírus associado ao surto da Polinésia?
Alysson Muotri: Sim, o vírus circulando no Brasil é 87-90% semelhante ao original africano. Essa diferença de 10% é muito significativa. Nós somos 99% semelhantes aos chimpanzés. Veja o que 1% de diferença pode fazer.
Saúde!Brasileiros: Houve mutações do vírus? É possível rastreá-las?
Alysson Muotri: Sim, sabemos quais as diferenças genéticas e quando elas surgiram. Agora, queremos saber como elas tornaram o vírus mais agressivo.
Saúde!Brasileiros: Nem todas as mães que têm contato com o vírus necessariamente vão ter bebês com más-formações. Entendemos melhor o que o que acontece nesse caso? Há hipóteses?
Alysson Muotri: Correto, estima-se que apenas 1% das infectadas terão bebês afetados pelo zika. Nosso trabalho mostra que o sistema imune é importante na susceptibilidade do vírus para cruzar a placenta.
Saúde!Brasileiros: No estudo, o zika só causou microcefalia em camundongos com sistema imunológico debilitado. Isso tem relação com o fato descrito acima?
Alysson Muotri: Sim.
Saúde!Brasileiros: Conseguimos agora explicar melhor a via de atuação do zika, fisiologicamente falando?
Alysson Muotri: Sim, nosso modelo permite recapitular a entrada do vírus no organismo, atravessando a placenta e infectando o feto. É um modelo mais completo que nos permite também testar algumas ideias terapêuticas, como vacinas.
Todos os resultados apontam que o vírus tem um tropismo, ou afinidade, pelo sistema nervoso. Vemos isso tanto no camundongo quando em modelos de mini-cérebros humanos.
Saúde!Brasileiros: No estudo, há descrições sobre o uso de clones humanos e chimpanzés do seu laboratório. Pode me explicar melhor essa parte?
Alysson Muotri: Usamos mini-cérebros de humanos e chimpanzés para tentar descobrir as diferenças evolutivas entre as linhagens virais. O vírus africano estava acostumado a infectar celular não-humanas. O vírus brasileiro não conseguiu atingir os mini-cérebros de chimpanzé, sugerindo uma adaptação a células humanas. Já o vírus africano, é menos agressivo em células humanas que o brasileiro.
Saúde!Brasileiros: Também foram extraídos materiais genéticos dos camundongos para análise. O que isso significa e o que essa etapa permitiu observar?
Alysson Muotri: Serviu para confirmar a presença do vírus e descobrir qual o mecanismo molecular usado pelo zika para matar as células progenitoras neurais [células presentes no início do desenvolvimento do feto que dão origem as demais].
Saúde!Brasileiros: O que acredita que esse estudo muda em termos de desenvolvimento de terapias de combate ao zika?
Alysson Muotri: O estudo abre portas para testes de vacinas e outras drogas que possam impedir que o zika chegue a cruzar a placenta.
Saúde!Brasileiros: Quais são os próximos desafios e quais novos estudos estão pensando em orquestrar?
Alysson Muotri: Queremos entender melhor como as alterações genéticas podem alterar a estrutura e funcionalidade do córtex humano. O córtex é a região do cérebro responsável pelo pensamento abstrato e atividades cognitivas mais sofisticadas, como linguagem e socialização.
Leia o estudo:
The Brazilian Zika virus strain causes birth defects in experimental models. Disponível em: http://nature.com/articles/doi:10.1038/nature18296
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