As pessoas são mais depressivas no Brasil?

No último mês, um relatório da Organização Mundial de Saúde sobre depressão serviu de gancho para textos na imprensa que colocavam o Brasil como amargando a maior prevalência da doença na América Latina. De acordo com os números, é isso mesmo. Temos 5,8% da população (11,5 milhões de pessoas) com depressão, o maior índice entre nossos hermanos. Nas Américas, estamos atrás somente dos Estados Unidos, que registram um pouco mais: 5,9%.  

Mas isso significa dizer que as pessoas no Brasil são mais depressivas? De repente, foi a crise econômica, o desemprego? O conflito político? Podemos, então, começar a desmanchar a imagem de felicidade constante que temos? Os nossos memes na internet são de fachada? Não, segundo Ricardo A. Moreno, diretor do Programa de Transtornos Afetivos do Instituto e Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.

Um dos pontos que explicam a prevalência aumentada em relação a outros países é a provável eficiência de nossos registros e diagnósticos. “Com todas as críticas que possamos ter ao SUS, ele nos dá acesso a dados de toda a população”, diz Moreno. A informação e o maior preparo dos profissionais para encaminhar pessoas ao tratamento também aumentaram nos últimos anos e podem explicar a prevalência. Todo esse cenário ajuda a entender outra estatística apresentada pelo relatório: o maior número de casos na região Sul do Brasil. 

Se mesmo o documento da OMS aponta que o acesso ao tratamento é uma dificuldade (em muitos países, menos de 10% dos doentes recebem terapia), é sensato dizer que em muitos lugares a prevalência da depressão seria bem maior se mais pessoas fossem tratadas. 

Foto panorâmica da cidade de São Paulo. Para Ricardo Moreno, da USP, estresse e crise não são necessariamente indicadores de depressão, que é uma condição médica. Foto: CC0/Public Domain
Foto panorâmica da cidade de São Paulo. Para Ricardo Moreno, da USP, estresse e crise não são necessariamente indicadores de depressão, que é uma condição médica. Foto: CC0/Public Domain


Então, ao contrário da reação negativa que os números possam incitar, eles são positivos, diz Moreno. “As pessoas estão buscando ajuda”, afirma. Isso não significa que não temos barreiras a enfrentar. Os dados por aqui também acompanham uma tendência mundial de maior número de casos. No mundo, o número de pessoas que vivem com depressão aumentou 18% entre 2005 e 2015. Também, apesar da melhora, há preconceito e falta de preparo dos profissionais de saúde. 

Um dos pontos importantes que embasam a abordagem de Ricardo A. Moreno é que a depressão é uma condição médica. Isso implica dizer que, mesmo que cenários perturbadores como o conflito político e econômico possam provocar mal-estar, a depressão é de outra ordem. Crise econômica não significa depressão, choro não significa depressão. Abaixo, saiba o porquê.


Saúde!Brasileiros: De acordo com os dados da OMS, podemos dizer que as pessoas no Brasil são mais depressivas? 

Ricardo A. Moreno: O que provavelmente explica isso é que hoje há mais registros de casos. Com todas as críticas que se possa fazer ao Sistema Único de Saúde, é um sistema que permite acesso a dados de toda a população e, provavelmente, temos um serviço de registro mais eficiente que em outros países da América Latina. As pessoas também procuram mais ajuda que antes. Hoje, há mais informação e os profissionais estão mais preparados. 

Qual o impacto dessa informação da OMS?

Isso é um sinal positivo porque as pessoas estão procurando ajuda e estão recebendo algum tipo de assistência. Por outro lado, há muitas barreiras a serem vencidas. A primeira delas ainda é o preconceito, porque a depressão ainda não é vista como uma questão médica.

Os dados também mostraram maior prevalência na região Sul. Isso também é uma questão de registro?

Provavelmente. Se você for pensar em termos de qualidade de vida, a região Sul supera outras do Brasil – como a região Norte e Nordeste, em que prevalecem maiores problemas sociais e econômicos e há mais abuso e negligência na infância, um fator de risco importante para a depressão. Não dá para dizer que as pessoas no Sul são mais deprimidas.

De onde vêm os dados utilizados no relatório?

De estudos epidemiológicos e das informações fornecidas pelo Ministério da Saúde. Com o SUS, o Ministério tem um controle de quem foi diagnosticado e das pessoas em tratamento. Os estudos epidemiológicos também dão um retrato da prevalência, mas é preciso verificar também a metodologia utilizada.

Um estudo de 1992, por exemplo, mostrou maior prevalência em Porto Alegre, mas havia problemas com o desenho do estudo ali. Há várias maneiras de fazer um levantamento: uma delas é um rastreamento por leigos, que apresenta casos suspeitos; outra, é via entrevista direta, que é mais confirmatória.

Qual a perspectiva que uma pessoa que está em tratamento tem no Brasil?

O potencial de melhora com os medicamentos que existem hoje é muito elevado. A eficácia é alta, embora 20% não responderão, como é comum em grande parte na medicina. Mas a grande maioria tem toda a condição de responder melhor.

Claro, medicamento não faz milagre. É preciso estimular os fatores de proteção e minimizar os fatores de risco. A psicoterapia também evoluiu muito, com técnicas e abordagens mais focadas. Hoje, o indivíduo não precisa ficar anos a fio esperando resultados. 

Há acesso ao tratamento?

O básico existe. O SUS fornece um cardápio de antidepressivos. Em 2002, nós fizemos uma pesquisa para avaliar o tratamento de pacientes com transtorno bipolar em São José do Rio Preto. Todos os recursos existiam. Havia uma falta de comunicação. Faltava também gestão das equipes médicas, com maior integração e agilidade no encaminhamento. Essa pesquisa foi muito interessante. Havia uma crença de que faltavam recursos, mas não era bem assim. Os pacientes tinham acesso a todos os exames complementares, como a dosagem de lítio.

O paciente que chega em um pronto atendimento, por exemplo, é encaminhado?

No pronto atendimento é difícil, porque a demanda é muito grande e tem que triar os casos mais urgentes. É um tratamento emergencial e é preciso agilidade para que ele funcione. Esse é o papel de um atendimento de emergência. Agora, se a pessoa procura uma consulta em uma Unidade Básica de Saúde, ela vai ser encaminhada.

Um cenário econômico e político difícil, como o de agora, pode predispor indivíduos à depressão?

Essa é uma pergunta interessante. É importante fazer uma diferença entre qualidade de vida, bem-estar e depressão. Depressão é uma doença bem documentada, com 40% dos casos tendo fatores genéticos como uma das causas. O que isso significa? Que o estresse econômico e político não tem necessariamente a ver com depressão.

Em toda a história humana, há casos de estresse político, econômico, de guerras. Há sofrimento, mal-estar, mas há rearranjos, reações e capacidade de agir. Todos nós temos recursos para nos adaptar a essas situações. Também ocorre, inclusive, o fator gregário, com os indivíduos se esforçando coletivamente para superar as adversidades. Há solidariedade.

Mas esses fatores podem ser um gatilho para a depressão em indivíduos com predisposição. Também um estresse crônico e duradouro pode afetar os recursos que temos para nos adaptar. Isso não é, entretanto, uma relação direta. Veja bem, São Paulo é uma cidade caótica, tem muito trânsito, mas isso não significa que todo mundo sai por aí desorganizado, que não há adaptações.

O que é depressão?

Depressão faz parte dos transtornos psiquiátricos e está na categoria Transtornos do Humor. É uma condição médica composta por vários sinais e sintomas que causam sofrimento e prejuízo funcional para a pessoa e sua família. Tem um custo elevado para a sociedade. É diferente de tristeza, mau humor, desesperança, que fazem parte da vida psicológica de todos nós. Um sintoma não faz diagnóstico. Não se trata apenas do indivíduo que chora ou está triste ou desgostoso com sua vida.

Há prejuízos para a vida do indivíduo, suas relações, seu trabalho. A depressão altera o pensamento, a memória, há lentidão motora e uma incapacidade de sentir prazer. Ela predispõe o indivíduo a uma série de doenças e enfraquece o organismo. Depressão não é só porque o indivíduo chora. O choro ou a tristeza por si só não fazem diagnóstico de depressão.

O psiquiatra Ricardo A. Moreno
O psiquiatra Ricardo A. Moreno. Foto: CEIP/USP

Um das dificuldades da psiquiatria é separar os transtornos, que muitas vezes coexistem – como, por exemplo, um mesmo indivíduo ter ansiedade e depressão. Como os consultórios lidam com isso?

Esse é o problema da psiquiatria atualmente. Essa tendência de pulverizar os diagnósticos. É preciso ter muito cuidado com isso. A ansiedade é um bom exemplo. Há transtorno de ansiedade generalizada, transtorno do estresse pós-traumático, fobias…

Muitos pacientes que têm transtorno de ansiedade vão desenvolver depressão em alguma fase da vida. Também pacientes com depressão convivem com sintomas ansiosos. É uma via muito delicada. Não dá para fazer essa separação tão precisa. No consultório, é preciso fazer hierarquias e tratar o problema mais incapacitante primeiro que, em muitas vezes, é a depressão. Tratamos a depressão e, se alguns sintomas ansiosos persistirem, entramos com um protocolo específico para ansiedade.

Hoje, há uma discussão na saúde sobre os determinantes sociais da saúde, de como fatores sociais e econômicos podem afetar a saúde dos indivíduos. Essa discussão é feita na psiquiatria?

A depressão é uma questão médica, não é social, não é mal-estar, não é bem-estar. Os determinantes sociais da saúde dizem respeito ao bem-estar da comunidade e isso não significa depressão. Como disse, alguns fatores podem contribuir como um gatilho para a depressão, mas ela tem causas biológicas bem definidas: parentes de primeiro grau afetados por depressão ou outros problemas psiquiátricos, usuários de drogas, algumas doenças médicas e medicamentos e abuso e negligência na infância. Estudos também mostram que a perda da figura materna na infância também é um importante fator.

Qual a perspectiva para melhorar o tratamento e diminuir a prevalência?

O mais simples e o mais direto é aprimorar o conhecimento e a educação das equipes de saúde. Se você educar os profissionais da área de saúde mental para o contexto moderno, já temos meio caminho andado. Esse contexto deve informar sobre os tratamentos eficientes e primar pela abordagem de que a depressão é um problema médico.

Há também as questões sociais mais amplas que já vêm ocorrendo, como o acesso à informação e também jornalistas com informações precisas sem viés ideológico têm um papel fundamental. Isso alerta as pessoas e as posiciona para vencer a ignorância e o preconceito.

Uma coisa que eu sempre digo ao paciente é que a depressão vai ser um problema na vida dele, mas que ele é um indivíduo mais complexo e muito melhor do que a depressão. Você não sabe como isso ajuda, porque um dos efeitos mais comuns é o autoestigma. A própria pessoa se sente estigmatizada por ser portadora de um problema para o qual não tem pleno controle. 


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