A Ayahuasca é uma bebida sagrada e alucinógena utilizada há séculos em cerimônias religiosas por mais de 400 povos indígenas sul-americanos e, mais recentemente, também por seguidores urbanos da doutrina Santo Daime. Sob o interesse da ciência, a bebida tem sido examinada para maior compreensão dos seus efeitos. Já foi constatado, por exemplo, a partir de estudos feitos com animais, que a harmina, um dos seus principais componentes, depois de extraído e concentrado em laboratório, oferece potencial terapêutico contra a depressão e a ansiedade.
Agora, novos trabalhos empreendidos por pesquisadores do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) e Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB-UFRJ) sugerem que a harmina pode ter ainda mais alguns efeitos para a saúde humana, especialmente na regeneração das células nervosas.
Para investigar a ação da harmina sobre células neurais humanas, os pesquisadores expuseram algumas células geradoras de neurônios humanos produzidas em laboratório à substância, obtida da Ayahuasca por meio de processos químicos. Após quatro dias em contato com as células, a harmina aumentou a proliferação dessas células precursoras de neurônios humanos em mais de 70%.
Os cientistas do Idor e do ICB-UFRJ também foram capazes de identificar como as células neurais humanas respondem à harmina. O efeito depende da inibição de uma determinada proteína conhecida como DYRK1A. “Sabíamos que o efeito de antidepressivos está associado ao estímulo da neurogênese em roedores. Resolvemos testar se harmina, presente em grandes quantidades na ayahuasca, faria o mesmo sobre células neurais humanas”, afirma Vanja Dakic, estudante de doutorado e uma das autoras do estudo.
“Nossos dados demonstram que a harmina é capaz de gerar novas células neurais humanas, semelhantemente ao observado com medicamentos antidepressivos disponíveis no mercado mas cujos efeitos colaterais são muitas vezes indesejáveis”, sugere Stevens Rehen, cientista renomado e pesquisador do IDOR e ICB-UFRJ. O trabalho acaba de ser publicado pela revista científica norte-americana PeerJ e foi realizado com o financeiro das agências brasileiras de fomento Faperj, CNPq, Capes, Finep, BNDES e Fapesp.
A fabricação dessa proteína (a DYRK1A) pelo corpo, assim como de outras proteínas, é comandada por um gene que também é muito ativo no cérebro de pessoas com Síndrome de Down e pacientes com Alzheimer. Rehen diz ainda que essa observação permite pensar em estudos futuros para avaliar um eventual efeito terapêutico dessa substância sobre déficits cognitivos observados em pessoas com Síndrome de Down e doenças neurodegenerativas.
Contexto diferenciado, efeito diferenciado
As perspectivas positivas desse estudo, contudo, precisam ser contextualizadas. Afinal, não é raro que grupos de pessoas simpáticas ao uso regular tendam a considerar que, como a harmina pode ser benéfica ao crescimento celular, sua associação com as outras substâncias contidas na bebida sagrada Ayauhasca também o será a longo prazo.
Essa é uma conclusão precipitada. Um dos motivos é que trata-se, neste trabalho, de uma substância isolada e que, em conjunto, ela pode ter ação diferenciada, uma vez que as moléculas interagem.
Um dos exemplos mais evidentes do bom uso de compostos químicos fora do seu contexto foi a descoberta do captopril, uma substância isolada do veneno da jararaca brasileira.
Deixe um comentário