A 12ª Bienal de Havana deu o que falar!

A 12ª Bienal de Havana, um marco na história do evento nascido em 1984, ocorreu poucos meses após a reaproximação de Cuba e Estados Unidos e tornou-se uma plataforma ainda mais aberta para projeção da produção artística da Ilha.

Houve mudanças substanciais neste ano e o título Entre a Ideia e a Experiência confirma isso. Hoje, a Bienal não é apenas um fenômeno reanimador da memória, mas uma força descentralizadora, ilustração viva do quanto a arte cubana avançou e conquistou não apenas o mercado internacional como, também, a população local com obras espalhadas por seus bairros. Durante um mês, fez reviver lugares tradicionais de Havana que já haviam caído no esquecimento. Entre experiências, utopias, encantos e desencantos, chegou a 2015 com mais indagações que respostas.

A importância da Bienal de Havana cresceu consideravelmente nos últimos dez anos, em consequência do espaço que a arte latino-americana conquistou internacionalmente e às grandes coleções formadas nos Estados Unidos. Jorge Fernández Torres, curador e presidente da Bienal, conta que essa edição começou a ser trabalhada há muito tempo e foi resultado de um laboratório com os curadores experimentados e um grupo de jovens que participou do debate, da análise e do desenho do evento.

KCHO, muro-Instalação nas dependências do museu, no bairro de romarillo onde fica seu estúdio
KCHO, muro-Instalação nas dependências do museu, no bairro de romarillo onde fica seu estúdio

A um corpo de oito a dez curadores do Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam, que promove a Bienal, dezenas de outros se associaram, sendo alguns estrangeiros. O mais experiente do “time”, Nelson Herrera Ysla está envolvido com a Bienal desde a mostra inaugural. Bastante crítico do próprio trabalho, nunca está contente. “Nós curadores poderíamos ter discutido ainda muito mais essa edição.” Do outro lado do balcão, os artistas parecem satisfeitos. Como diz Herrera Ysla, agora, mais do que nunca, em número assim tão grande, os artistas estão experimentando várias operações estéticas dentro e fora dos espaços tradicionais de exposições. A carência de grandes exposições foi aliviada pelo aparecimento de espaços alternativos de exibições, sejam nos próprios ateliês (são raros os artistas que os possuem), ou locais coletivos adaptados para esse fim.

Esse fenômeno cresce cada dia mais em Cuba. Mas como será o futuro do circuito de arte? Ninguém arriscou responder.

Nessa 12a edição, valeu a pena mergulhar no Terzo Paradiso de Michelangelo Pistoletto, e atravessar com ele em uma balsa lotada de cubanos para o bairro pobre de Casablanca, o mais antigo da cidade. Participar da performance do coletivo carioca Opavivará, que eletrizou os moradores do deteriorado edifício Califórnia com uma performance alegre, interativa, traduzida em uma “feijoada”. Ver Regina Silveira se soltar nas ruas de Havana e “grafitar” a região portuária com sua intervenção Phantasmata. Viajar quase 20 km em um Chevrolet 52 para conferir o minimalismo construtivo da obra Muro, de Kcho, e descobrir as obras espalhadas pelo bairro simples de Romerillo onde está seu museu/ateliê. E depois passar pelo antigo e desativado Vedado Bicycle Factory, onde fiquei surpreendida com as instalações de um time de oito artistas que fizeram a diferença nessa edição, entre eles Pierre Huyghe e Abraham Cruzvillegas.

Rachel Valdés, cubo azul, acrílico translúcido, atraiu o público que passeava pela orla marítima
Rachel Valdés, cubo azul, acrílico translúcido, atraiu o público que passeava pela orla marítima

 A cartografia se realiza na leitura de mundo, a partir do estranhar o óbvio e não por meio do olhar viciado. Esse pensamento esteve vivo na intervenção Detrás del Muro, uma das várias mostras paralelas, que tomou conta do Malecón, mureta que serpenteia toda a orla de Havana, e que exibiu 50 obras entre esculturas e instalações ao ar livre. O norte-americano Duke Riley proporcionou às crianças o melhor projeto do conjunto, uma pista de patinação no gelo, sem gelo. Com poderes especiais, o cubo gigante de acrílico de um azul translúcido de Rachel Valdés atraía por sua persistência visual, assim como a ação performática do fotógrafo Alvaro José Brunet, Destino Final. Não resisti e me misturei aos curiosos que cercavam sua barraca cheia de fotos à disposição de quem gostasse. Escolhi a imagem de um pincel vermelho, cuja cerda é uma língua, bem viva. Ótima metáfora para os tempos que vivemos.

Toda a ebulição da 12a Bienal teve a sustentação de 180 artistas vindos de 44 países, sob a curadoria de Jorge Fernández, diretor da Bienal: Margarita González Lorente, Nelson Herrera Ysla, José Manuel Noceda Fernández, Margarita Sánchez Prieto, Ibis Hernández Abascal, Dannys Montes de Oca Moreda e José Fernández Portal, além dos curadores convidados. Eles entenderam que não há muitos lugares fixos para a arte e os inúmeros artistas movem-se em um espaço flutuante, às vezes muito experimental, resultado da aclimatação desses efeitos descentralizadores.

Integrante do coletivo carioca opavivará que envolveu os moradores do condomínio califórnia na performance "Você Tem Fome de Quê?"
Integrante do coletivo carioca opavivará que envolveu os moradores do condomínio califórnia na performance “Você Tem Fome de Quê?”

Arte e ideologia nunca foi casamento perfeito. Um dos pontos polêmicos deste ano envolveu, mais uma vez, a artista cubana Tania Bruguera, que se define “revolucionária”, e que investiga mecanismos para provocar situações políticas. Foi assim com a performance O Sussurro de Tatlin, de 2008, já apresentada na Europa e na 10a Bienal de Havana, em 2009, no Centro Wifredo Lam, em que um microfone ficava aberto ao público por 40 minutos para pronunciamentos espontâneos. Na ocasião, 39 pessoas falaram um minuto cada, inclusive com a participação da bloguera Yoani Sánchez. A insistência de Bruguera em reapresentar O Sussuro de Tatlin, em dezembro na Plaza de La Revolución, em Havana, com infiltração de pessoas alheias às suas “declaradas” convicções político-ideológicas, só enfraqueceu sua obra. E a insistência do governo em não permitir uma ação já realizada em 2009, parece um equívoco. Conversei longamente com os dois lados desse “cabo de guerra” e ambos reconheceram que houve “ruídos” nas negociações. Vejo pouca coerência nessa crise, que gerou a prisão de Tania Bruguera por violar o combinado, mas também reconheço momentos de grande coragem. No final, lembrei a Tania Bruguera que Picasso fez uma única obra política, Guernica, que se tornou a mais contundente do século XX.

Outra polêmica que esquentou o clima envolveu a megaexposição paralela Zona Franca: Um Espaço para Utopia, que se instalou na antiga Fortaleza Morro y Cabaña, local que era ocupado pela Bienal e que deu brecha a esse novo evento. Trata-se de uma dessas ideias que cedo ou tarde acabariam se tornando realidade. Mais de 250 artistas, entre emergentes e consagrados, foram expostos nas antigas casernas do histórico forte militar. O excessivo número de participantes, aproveitando a visita de colecionadores e galeristas internacionais, somou-se à presença nessa cidade “letrada” do Instituto Superior de Arte, o ISA, que há longos anos forma a maior parte dos artistas da Ilha. De qualquer jeito, o projeto político “revolucionário” desde sempre priorizou mostrar tudo o que os cubanos produzem bem. Então, já estava na hora de organizar a vitrine. Talvez, uma mostra dessa natureza pudesse ser realizada em outra data assumindo o nome de Feira de Arte. Por que não? Há críticos torcendo o nariz, achando que a produção cubana está levando as coisas longe demais, incitando um sentimento de crescente comercialização da arte, mas, convenhamos, não dá para ser romântico. Quem faz a arte? Quem a consome? Seja como for, não acho possível ficar imune ao mercado. Isso pode ser também uma chave para a maturidade.

- Regina Silveira “grafitou" a região portuária da cidade com sua intervenção "Phantasmata"
– Regina Silveira “grafitou” a região portuária da cidade com sua intervenção “Phantasmata”

 

A jornalista e pesquisadora Isabel Perez y Perez, curadora-geral do Zona Franca, com Rubén del Valle, não confirma nem descarta a possibilidade de se criar uma Feira em Havana. Tudo está em aberto e eles estão atentos às sugestões. “Como você pode imaginar, recebemos centenas de trabalhos, mesmo selecionando-os ficaram muitos.” Hoje, o percurso de uma obra até o consumidor não é mais linear, e sim circular, e o que ficou claro é que Zona Franca engoliu a 12a Bienal.

Imune a discussões, o Museu de Belas Artes de Havana lotou com profissionais, colecionadores, curadores, galeristas estrangeiros e alguns se surpreenderam com a coleção do modernista Wifredo Lam, o artista mais importante da Ilha, e com obras de artistas contemporâneos como Carlos Garaicoa, Tomás Sánchez, Kcho. Os cubanos, no entanto, foram para ver Noise Selvagem, a coleção do Bronx Museum of the Arts, de Nova York, organizada por seu diretor, Holly Block. O primeiro intercâmbio entre museus de arte de Cuba e dos Estados Unidos em quase 50 anos. Do outro lado da cidade, o grupo cubano Los Carpinteros, sucesso fora da Ilha, inaugurou um estúdio em Havana que está em conexão com o ateliê de Madri. Sean Kelly, seu galerista de Nova York, comentou a oportunidade histórica desse momento, tanto para a arte cubana como para as relações entre Cuba e EUA. Ele era um dos 1.400 norte-americanos credenciados para a Bienal deste ano.

À noite, tive a sorte de ver Anri Sala em uma performance no Centro Wifredo Lam e provar que a sustentação dos sons foi sempre um desafio básico da criação musical na simbiose com a arte. Pela manhã, três monstros sagrados da arte contemporânea faziam uma espécie de interpretação sociológica, tentando desculpar-se pelo sucesso deles entre os artistas jovens. Daniel Buren, Michelangelo Pistoletto e Joseph Kosuth recebiam o título Honoris Causae do Instituto Cubano de Arte. Enquanto isso, o vai e vem de micro-ônibus lotados  de especialistas e “olheiros” na porta de alguns ateliês provaram que o percurso sonhado por Andy Warhol, o de passar do status de artista comercial para o de artista de negócios está se completando.


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