34º Panorama coloca artistas contemporâneos em dialética com povos pré-históricos

Desde 1969 o MAM paulista realiza o Panorama da Arte Brasileira, exposição que em outras décadas já foi a mais importante depois da Bienal de São Paulo. Agora, com brilho esmaecido, sua relação com o sistema de arte é bem diferente. No entanto, sua 34ª edição inova e responde a uma provocação dos tempos, colocando na mesa a questão ambiental. Mais do que isso, mergulha em uma memória que pertence a todos. Muito próprio para o momento, em lugar do País novo e de futuro incerto, o público descobre uma terra que corrige os apontamentos “pitorescos e estereotipados” dos desenhistas estrangeiros que vieram ao Brasil há mais de um século.

Marcel Proust foi um dos primeiros intelectuais a sinalizar a importância da memória no processo de criação. A recuperação de territórios por meio de práticas estéticas se impõe de maneira diferente entre artistas atuando em contextos diversos. O meio ambiente entra como tema do Panorama com a dialética entre seis artistas contemporâneos e trabalhos de povos que habitaram o litoral brasileiro na Pré-História, tudo para refletir sobre a preocupante situação do planeta.

Cildo Meireles, "Mutações Geográficas, Fronteira Vertical", 1969-2015
Cildo Meireles, “Mutações Geográficas, Fronteira Vertical”, 1969-2015

Com curadoria de Aracy Amaral e Paulo Miyada, a coletiva “mistura” a temporalidade. Como assinalou Herbert Marcuse (1898-1979), a lembrança do passado pode dar lugar a perigosas descobertas e a sociedade estabelecida parece ter apreensão com respeito ao conteúdo subversivo da memória. Pedras polidas produzidas entre 4000 a.C. e 1000 a.C. pelos povos sambaqueiros, antigos habitantes do litoral que se estende hoje do Sudeste brasileiro ao Uruguai, confrontam-se com trabalhos contemporâneos de artistas consagrados. Para reconstruir esse passado matizado por processos mentais e emocionais, Aracy preferiu contar com artistas maduros a enfrentar os emergentes que pululam nas grandes exposições atuais. “Jovens são para os projetos como Rumos das Artes; preferi trabalhar com artistas mais experientes.” Com essa ferramenta, a curadora analisa a tradição e a contemporaneidade com os aportes de culturas autóctones ancestrais em confronto com a contracultura da metrópole com valores mutáveis. “Há muito tempo queria fazer uma exposição dessa natureza.” Ela agora concretizou seu desejo reunindo uma coleção representativa de 60 peças líticas, vindas de vários museus brasileiros. Nos anos 1980, Aracy teve o primeiro contato com o arqueólogo francês André Prous, que mora no Brasil e pesquisa sambaquis litorâneos, complexos formados por toneladas de conchas. “Ele também estuda artefatos encontrados neles, os zoólitos, ou seja, pedras em forma de animais”, explica a curadora.

Quem visitou a exposição em um domingo qualquer pôde compartilhar a reação e a desinformação do público sobre os sambaquis, essas montanhas de conchas amalgamadas com detritos da sociedade. No entanto, é na América Latina onde se manifesta com maior clareza o discurso da história e memória, apoiado agora em um suporte científico cujas obras apontam para uma reflexão inusual sobre o indivíduo e a sociedade.

Milhares de anos separam uma parte da exposição da outra, e Cao Guimarães é quem melhor traduziu a analogia entre os dois tempos. Câmara na mão, partiu para o litoral catarinense e rodou Filme em Anexo, registrando as intrincadas relações entre os corpos internos e as estruturas operativas do espaço urbano, onde ainda existem alguns dos últimos sambaquis salvos da depredação. O vídeo aborda a permanência da prática de cultivo de moluscos na região. A instalação Wishful Thinking, de Miguel Rio Branco, mostra-nos, subliminarmente, que ele agora só quer gastar seu tempo com a natureza, sem se enredar no clima superficial que toma conta do circuito de arte, perceptível mesmo antes de Aracy me confessar o desejo dele.
Vilões ambientais da era contemporânea, as toneladas de plásticos jogadas na natureza são o elemento central de uma das obras da paraense Berna Reale. Na videoperformance Hábito ela tenta desmascarar a chamada estética pós-moderna da negociação global ao costurar sacos plásticos que embrulham ternos de políticos e que também envolvem corpos de vítimas da violência urbana dentro de um IML.

Como dizia Pasolini, não existe arquivo neutro, todo arquivo é cúmplice, prefigura uma tomada de partido específica em relação a outra hegemonia em jogo. Morte, descarte e extinção de ciclos de vida útil estão ordenados sobre o piso, no trabalho da paulistana Erika Verzutti, com o título Cemitério. A instalação é composta de peças escultóricas que não deram certo e são abandonadas, analogia contundente do processo migratório atual. As pinturas do goiano Pitágoras podem ser o divisor das águas dentro dessa configuração do entorno urbano e rural, e trazem o traço das pinturas rupestres e o vigor das pinceladas neoexpressionistas urbanas, underground, nervosas e agregadoras de significados de vida.

O ponto alto da mostra é a expedição do carioca Cildo Meireles ao cume do Pico da Neblina, local sagrado dos índios ianomâmis. Há um jogo de ir e vir, revezamentos, junções entre o longínquo, situado fora do alcance do espectador, e as imagens expostas. Os índios foram envolvidos nessa empreitada, realizada pelo fotógrafo Edouard Fraipont. Em 1969, aos 21 anos, Cildo Meireles concebeu uma série de desenhos em papel milimetrado, que denominou arte física, por demandarem, para sua realização, deslocamento e articulação com o espaço geográfico. Trata-se de um dos projetos Mutações Geográficas: Fronteira Vertical e que consta de uma performance realizada em expedições em Yaripo (que significa ponto mais alto, em ianomâmi) ou montanha sagrada, no Parque da Neblina, e que eleva em alguns centímetros a altitude máxima do Brasil. Esse projeto, concretizado agora para esta exposição, acha-se documentado em foto e vídeo e é apresentado ao lado de outros projetos da série.

O tempo se reconstrói de maneira repetitiva, em pontos distintos e temporalidades breves que podemos chamar de acontecimentos. Eles aparecem e desaparecem, heterogêneos, singulares frequentemente imperceptíveis. Parece algo como resultado do contato com essa variedade de ecossistemas em nossas terras: Amazônia, caatinga, cerrado, mata atlântica, restinga, campos, mata das araucárias, pantanal. Como dizia Pierre Restany, autor, com Sepp Baendereck e Frans Krajcberg, do Manifesto do Rio Negro, “o futuro é a nossa memória, é aquilo que os estoicos chamam de destino”. Esse traço enigmático é posto em evidência no conjunto de obras deste Panorama que estabelece o tempo com sua própria matéria e realiza a façanha de subtrair toda a temporalidade ao tempo. Aqui cada uma das peças, felizmente, tem essa função.

34º Panorama da Arte Brasileira 
– Da pedra Da terra Daqui
Até 18 de dezembro
Museu de Arte Moderna de São Paulo
Parque Ibirapuera, Portão 3 – São Paulo/SP
11 5085-1300 – mam.org.br


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