Cor, linha, arabesco, espaço. Sem dúvida, temas de fundamental importância na obra do artista francês Henri Matisse (1869-1954). Mas para o velho mestre das cores, a criação artística precisava ir além. Considerado, de maneira quase unânime, o mais importante artista do século XX, Matisse, inspirando-se em seu entorno imediato, subverteu os meios de representação pictórica, colocando em xeque a pintura tradicional. A arte de viver era para ele uma questão bem mais relevante. E os temas? Apenas mais um pretexto para criar.
“Matisse perseguia o simples, a cor pura, a linha autêntica e em sua busca abriu novos caminhos para a pintura”, afirma Emilie Ovaere, curadora do Musée Matisse de Le Cateau-Cambrésis, na França, e uma das responsáveis pela primeira exposição individual do artista no Brasil – e a pioneira também da América Latina. A mostra Matisse Hoje, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, procura justamente explorar o processo criativo do artista em suas diferentes fases e nuances.
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A exposição apresenta coleções privadas e importantes acervos públicos, como o do Musée National d’Art Moderne – Centre Pompidou, em Paris, da Biblioteca Nacional da França e do Musée Matisse, localizado em Le Cateau-Cambrésis, cidade no extremo norte da França, onde nasceu o pintor.
Com um total de 93 obras, entre desenhos, esculturas, pinturas, gravuras e livros ilustrados, a mostra apresenta uma ideia panorâmica da obra do artista francês, observa Regina Teixeira, curadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, que prestou assistência à curadoria francesa. “Será possível conhecer a correspondência entre as diferentes técnicas utilizadas por ele.” A exposição que levou cerca de dois anos para ser organizada traz, segundo a curadora brasileira, “uma visão generosa da obra de Matisse, como nunca se viu antes”.
Instaladas nas salas climatizadas do museu, as obras foram divididas em cinco temas: paisagem, natureza-morta, as mulheres nos interiores, o desenho e os papéis colados. No conjunto, fazem uma retrospectiva da carreira do artista. As paisagens de juventude, a fase de criação do fauvismo e a série de odaliscas são alguns períodos de Matisse resgatados na mostra em São Paulo.
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“Precisei de uma mancha preta para evocar a reverberação do sol sobre o mar”, comentou o artista em texto publicado no livro Matisse – Escritos e reflexões sobre a arte, Cosac Naify.
Aliando cor e desenho ao prazer e a emoção intensa da realização, fruto de sua relação sensorial com a arte – direta e imediata -, Matisse abriu caminhos nunca antes percorridos. “Foi assim que surgiu a invenção revolucionária dos papéis recortados”, observa Emilie. Criação, porém, que também não o resume. Sua obra era inspirada, sobretudo, na vida, estivesse ela na forma que fosse. Emoções, flores, mulheres ou em objetos do cotidiano. “De alguma forma, ele nos diz que a arte é a vida e vice-versa”, conclui Emilie.
Matisse revisitado Principal evento das comemorações do Ano da França no Brasil, a exposição Matisse Hoje traz ainda cinco artistas franceses contemporâneos, Cécile Bart, Christophe Cuzin, Fréderique Lucien, Pierre Mabille e Philippe Richard, cujas obras dialogam de alguma forma com o universo de Matisse. Mas a influência matissiana não fica restrita apenas aos artistas franceses, prova disso são as obras selecionadas para a exposição dos artistas brasileiros, Beatriz Milhazes, Rodrigo Andrade, Paulo Pasta, Dudi Maia Rosa, Felipe Cohen e Waltercio Caldas. O público também poderá conferir na exposição o cotidiano de Matisse, flagrado pelas lentes de mestres da fotografia, como Henri Cartier-Bresson e Man Ray.
Imagens não menos importantes, que serão exibidas na mostra, são as de dois documentários, Henri Matisse, de François Campaux (França, 22 minutos), realizado em 1946 – considerado um clássico, o artista aparece no filme desenhando em seu ateliê, num trecho em câmera lenta, e A Model for Matisse: the story of Henri Matisse, Sister Jacques-Marie and the Vence Chapel, com direção da americana Barbara Freed (EUA, 67 minutos). Esse filme aborda um de seus últimos trabalhos, os painéis de azulejos, vitrais e aparatos diversos que criou para a capela do Rosário, em Vence.
Matisse é pop Mas, afinal de contas, por que Henri Matisse é tão admirado e suas obras tão valiosas? A pergunta parece simples, mas não é. Outros nomes, decisivos para arte no século passado, poderiam compor o pacote de indagações, como Picasso e Duchamp. Entretanto, o momento é oportuno para buscar uma resposta. É o que afirma a crítica de arte Sônia Salzstein, organizadora do livro Matisse: Imaginação, Erotismo, Visão Decorativa, Cosac Naify, coletânea de ensaios críticos lançada durante a exposição em São Paulo. “Mais do que nunca, me parece necessário uma recapitulação do modernismo”, afirma.
Não há duvidas, prossegue Salzstein, de que a modernidade encerrou um grande ciclo. “Tudo indica que estamos mais livres dos preconceitos e das tantas interpretações redutoras, tão características das últimas décadas do século XX.” Para ela, somente o conformismo pode fazer crer que tudo já foi dito sobre artistas como Matisse. “Há algo nessa obra que instiga profundamente a sensibilidade contemporânea”, afirma.
De fato. Não faltam indagações e argumentos nos artigos, assinados por nomes de peso da crítica de arte, como Louis Aragon, Roger Fry, Clement Greenberg, entre outros. A edição traz ainda um caderno de imagens, com quarenta reproduções coloridas e analisadas nos ensaios.
Olhos de criança Matisse buscava expressar-se de maneira genuína, foi isso que o levou a se distanciar dos métodos pictóricos tradicionais. Fator determinante para o conjunto de realizações do pintor, segundo o crítico de arte Robert Kudielka, em artigo no livro Matisse: imaginação, Erotismo, Visão Decorativa. “O ‘reencontrar a pureza dos meios (pictóricos)’ é libertá-lo do peso demasiado da utilização, do monopólio cego pelo gosto e da instrumentalização objetiva pela descrição do mundo visível.”
“A cor existe em si mesma, possui uma beleza própria”, escreveu Matisse certa vez. Já em seu livro Escritos e reflexões sobre arte, ele afirma que nossa visão de mundo é corrompida, mais ou menos, pelos hábitos e, já naquela época, pelo bombardeamento de imagens prontas, provenientes dos mais diferentes meios, como cinema, publicidade e outros. “São para a visão aquilo que o preconceito é para a inteligência.” E para não deixar o leitor de mãos abanando, o mestre dá a receita: “É preciso olhar a vida com olhos de criança”.
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