Ao Sul da teoria

Conversas com objetos
Escultura antropomórfica do povo puno, grupo étnico do Gabão


Katharina von Ruckteschell
, diretora do Goethe-Institut São Paulo e também diretora regional da instituição na América do Sul, lembra a importância que o filósofo alemão que empresta o nome à instituição dava aos encontros para a troca de conhecimento. Foi com isso em mente que ela, depois de ter atuado também na África do Sul, criou o projeto Episódios do Sul, para promover intercâmbio direto de conhecimento e experiências entre agentes do chamado sul global – conceito geopolítico cada vez mais usado para agrupar os países do sistema-mundo moderno, antigamente denominados Terceiro Mundo. O projeto coincide com um momento em que a documenta de Kassel planeja dividir sua próxima edição, em 2017, entre Alemanha e Grécia, país que, embora europeu, é considerado parte do sul global e constitui hoje ponto nevrálgico na geopolítica e economia do continente, devido à crise econômica e migratória em curso. Existe, inclusive, intenção de que parte dos resultados do Episódio Museal, uma série de encontros sobre o futuro global dos museus – já realizados em Salvador, Santa Cruz e La Paz, e com previsão de ocorrer também em Joanesburgo –, seja apresentada em evento público durante a documenta em 2017.

Com três anos de duração, ao longo dos quais estão sendo realizados debates, pesquisas, programas de intercâmbio, produções artísticas e acadêmicas, o projeto reúne artistas, curadores e diversos agentes culturais principalmente da América Latina, Ásia e África. São pensadores chamados “inconformistas” com práticas contra-hegemônicas que desafiam a história social, da arte e da filosofia, em favor de uma contranarrativa e outras histórias, no plural. Cada episódio tem formato diferente e se organiza em torno de uma questão específica que se conecta, senão de forma direta, de forma tangencial ao demais episódios: existe uma história da arte global? Quais os caminhos para uma descolonização do pensamento? Como seria o museu do futuro? Como são os novos caminhos de aquisição e mediação de conhecimento?

Se alguns desses questionamentos são propostos pelo próprio Goethe-Institut, a ele se unem questões e projetos de diversos parceiros como o Programa de Ações Culturais Autônomas (P.A.C.A.), realizador de uma série de encontros intitulados Urgências!, que criam espaço para o debate presencial sobre eventos apresentados como exceção, novidade, acidente, notícia. Em parceria com a fundação colombiana Más Arte Más Acción e com o programa Intercâmbios Sur-Sur, a residência artística Utopias na Selva oferece uma imersão na bacia do Amazonas (no Brasil e na Colômbia), um lugar supostamente “fora do comum” que oferece a seus participantes a possibilidade de troca de saberes com a comunidade da região, na construção de reflexões sobre utopias e distopias, questões sociais e ambientais. Um dos episódios, chamado de Conversas com Objetos, questiona frontalmente a história da arte e da cultura material, trazendo para a arte uma discussão muito presente nas ciências humanas, especialmente na antropologia do francês Bruno Latour, que situa os objetos como atores sociais capazes de assumir papel ativo na interação com agentes humanos. Diversos especialistas são convidados a “conversar” com um objeto, confrontando sua materialidade, tensionando os limites de suas práticas discursivas e das relações que estabelecemos com as coisas. Desconstruindo a dicotomia sujeito-objeto, tal qual é entendida no Ocidente, o projeto privilegia uma perspectiva não europeia sobre a história da arte e do próprio entendimento do que é um objeto de arte.

Embora partindo de questões diferentes e com formatos específicos, todos esses episódios são atravesados por um desejo de descolonizar o pensamento e pensar o sul a partir dele mesmo, de suas próprias coordenadas e epistemologias. Não tanto pensar sobre o sul, mas pensar o sul, com o sul a partir e para ele mesmo. Como diria o antropólogo Arjun Appadurai, “em vez de pensar uma teoria do sul que gera formas de pensar tradicionais do norte, um ‘ao sul da teoria’, que dará origem a uma outra arquitetura da cultura global”. Uma arquitetura global ainda desconhecida, e que justamente porque desconhecida necessita ser imaginada. Trata-se, então, de usar a arte e a cultura, em todo seu potencial imaginativo, para desafiar a racionalidade moderna cujo discurso técnico-científico produziu exclusão e apagamento de saberes e subjetividades antes considerados “mundanos” ou “arcaicos” – como os saberes indígenas, da natureza, do corpo.

Jogos do Sul

Pensado a partir do contexto dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o episódio Jogos do Sul consiste em uma exposição que teve como ponto de partida e contraponto os Jogos Indígenas,  realizados de outubro a novembro de 2015, em Palmas/TO, com a participação de mais de dois mil atletas de 30 países. Na ocasião, os curadores Alfons Hug e Paula Borghi convidaram artistas brasileiros e estrangeiros para assistirem às disputas em Tocantins e a partir daí produzirem obras de arte que refletissem sobre: a comercialização do esporte, a economização global e o acentuado aspecto competitivo, que se tornou foco da cobertura midiática, eclipsando o caráter social do evento. Algumas obras apresentam uma crítica direta à Olimpíada. A artista Romy Pocztaruk, por exemplo, apresenta uma série de fotos de Saravejo, retratando lugares construídos para os Jogos e que hoje estão completamente abandonados. 

Para Paula Borghi, “a ideia era pensar o evento a partir de uma perspectiva crítica, refletindo sobre o seu impacto em uma cidade caótica como o Rio de Janeiro, na qual riqueza e pobreza convivem lado a lado. Para pensarmos sobre isso, fomos até os Jogos Mundiais Indígenas em Palmas”. Não se trata de uma exposição “indianista” entretanto, mas de um projeto orientado pelo desejo de deixar visível como as Olimpíadas foram jogos da exclusão. Embora sua missão oficial seja reunir todos os povos do mundo em uma celebração multicultural pacífica, os chamados povos tradicionais e suas modalidades desportivas não olímpicas acabam sistematicamente excluídos. Oferecendo um contraponto a essa hegemonia ocidental, alguns artistas criaram obras que dialogam direta ou tangencialmente com questões indígenas. Marcone Moreira, por exemplo, apresenta 24 tabuleiros provenientes de trocas espontâneas com pessoas de várias partes do Brasil. São trabalhos que flertam com a  herança construtivista da arte brasileira, com uma geometria orgânica. Durante suas pesquisas para a exposição, o artista descobriu, entretanto, que existe o registro de um jogo indígena de tabuleiro ancestral, chamado jogo da onça, que é uma metáfora da caça. “É interessante que, assim como nós, os indígenas da América do Sul também possuam um jogo de tabuleiro que reflete questões do seu cotidiano”, afirma ele.

Jogos do Sul
Até 22 de outubro
Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica – Rio de Janeiro
Rua Luís de Camões, Centro
21 2242-1012


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