Aparentemente Anárquicos

Rock’n roll em estado bruto, música erudita emanando das ondas médias da Rádio Cultura, e o mais absoluto silêncio. Encontramos isso e muito mais em visita aos ateliês de três grandes artistas contemporâneos brasileiros: a jovem Estela Sokol e os companheiros de Geração 80, Sérgio Sister e Paulo Monteiro. Vizinhos de uma mesma rua na Barra Funda, eles compartilham experiências de amizade e encontraram nesses espaços o refúgio ideal para uma intensa produção artística. Sérgio Sister foi o primeiro deles a chegar à Rua Camarajibe. Seu ateliê – o maior dos três -, instalado na sobreloja de um galpão, foi “descoberto” por ele quando a sobrinha e atriz Ilana Gorban locava o espaço com uma turma de amigos que iniciava um grupo de teatro experimental. Quando, em 1998, a trupe abandonou o galpão, Sérgio não hesitou e trocou seu antigo ateliê – uma quitinete na Rua Ribeiro Alves, à quarteirões dali – pelo amplo espaço da sobreloja. Como Estela e Paulo, Sister também enfatiza que o bairro, repleto de galpões desativados, propicia uma imbatível relação custo-benefício, e desde os anos 1980 passou a atrair artistas como Célia Euvaldo, Laura Vinci e Renata Tassinari.

Produzindo novos trabalhos ou não, Sérgio vai diariamente a seu ateliê. Tem, hoje, a assistente Ana Carolina Sario por perto, mas confessa preferir o trabalho solitário. Atualmente, ele prepara trabalhos para duas exposições, uma com início em 20 de agosto, na Galeria Lemos de Sá, em Belo Horizonte, e outra em Nova York, com abertura prevista para o final de outubro, na Josee Bienvenu Gallery. Precoce, Sister participou da Bienal de São Paulo de 1967, aos 19 anos, algo “insignificante, estava ainda em um momento de procura”, como define. Em 1970, por conta do envolvimento com a militância que se opunha ao regime militar, foi preso e permaneceu encarcerado por 19 meses. Fato que só fez recrudescer sua resistência e o afastou da produção artística. Sister trabalhou muitos anos como jornalista, fez pós-graduação em ciências sociais pela USP, e somente voltou à tona, como artista, no começo da década de 1980. “Quando estava engatilhado o processo de redemocratização do País, passei a me dedicar mais à arte e encontrei uma poética maior no fim da década de 1980. Todas essas experiências entraram em minha subjetividade, mas não faço arte política. Lógico que algumas escolhas e opções são políticas. Tenho uma ética para a minha a arte. Uma ética da mudança e da transformação. Gosto de unir diferenças, misturar coisas simples com outras mais complexas. E a defesa do encontro dessas diferenças também é uma escolha política”. O depoimento acontece ao som de música erudita que emana do rádio. Na mesma estante que acomoda o aparelho, um porta cd’s acolhe obras do organista Jimmy Smith, Sly & the Family Stone, Béla Bartók e Schumann. Em tarde de inverno rigoroso, Sister faz questão de nos oferecer uísque “cowboy”. Fato antecipado, minutos antes, pelo amigo Paulo Monteiro, na solidão de seu ateliê: “Conheço bem o Sérgio e, nesse frio, aposto que ele vai receber vocês com um bom uísque. Sem gelo, mas um bom uísque!”.
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Egresso do grupo Casa 7 - coletivo que revelou os artistas Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Nuno Ramos e Rodrigo Andrade -, Paulo Monteiro guarda lembranças de uma rica aventura estética ao lado dos amigos, mas defende a experiência de trabalho individual como deflagradora de novas possibilidades: “Fiz parte do Casa 7, uma experiência muito rica, mas é muito melhor estar sozinho. Cada um desses objetos, cada pote de tinta, martelos e pregos que trouxe para cá, quando os movo de um lugar para o outro, há sempre uma escolha nisso. Adoro a bagunça daqui e deixo vestígios por todas as partes, pois sempre gostei de pintar no chão. O convívio com os outros é importante, mas é somente aqui que posso ser eu mesmo. Um trabalho solitário, mas uma solidão muito boa”. Ocupado por ele desde 2010, o galpão já havia acolhido a jovem artista Laura Huzac Andreato. Quando soube da saída de Laura, Sister correu para dar a notícia a Paulo. Até então, ele tinha um pequeno ateliê, na Vila Mariana, que limitava suas ambições de produzir trabalhos em maior dimensão: “Esse novo espaço resulta em uma grande diferença de possibilidades. Tenho mais condições de trabalho, de visualizar a obra à distância, e de poder experimentar outros tamanhos. Eu pintava muito em tamanhos médios e pequenos, mas poucos desse aqui… (aponta para algumas telas com cerca de 2m de altura, algumas pintadas e outras virgens)”. As visitas de Paulo ao ateliê são irregulares. Tem uma exposição marcada para outubro, na Galeria Maria Razuk, que o representa, e tem ido frequentemente ao ateliê, empenhado em produzir para esse fim. Um trabalho solitário, onde não cabe sequer um decibel de música. Silêncio e isolamento parecem ser as receitas da catarse que resulta nas pinturas e esculturas de Paulo Monteiro.

Nove anos antes da chegada de Paulo à Rua Camarajibe, em 2001, o galpão vizinho ao dele foi dividido pelos artistas Fernando Vilela e Estela Sokol. Estela permaneceu ali até 2004, quando se casou com o argentino Pablo Vilar, experiente montador de feiras e exposições nacionais e internacionais, como a Bienal de São Paulo e a Feira ARCO, em Madri. Convidada a morar com Pablo em sua “casa-ateliê” no bairro de Vila Romana, experimentaram, por um período, a estrutura que Estela considera “ideal” para um ateliê. Além da casa de Pablo, adequada aos trabalhos mais limpos, alugaram um grande galpão, em frente a esta casa, onde o trabalho sujo – marcenaria e pintura – eram feitos. Em 2007, a crescente verticalização do bairro fez com que fossem obrigados a entregar os dois imóveis. Ocasião em que, coincidentemente, Vilela abandonou o espaço em que Estela ensaiou os primeiros passos e ela voltou para a Camarajibe. Quando não se dedica ao papel de arte-educadora em escolas públicas, ela procura passar o máximo tempo possível no ateliê: “Minha relação com o ateliê é muito intensa e importante para minha produção. Quando tinha um ateliê menor, eu trabalhava mais no mundo das ideias, e acho que meu trabalho é mais do fazer do que das ideias. Lógico que tenho ideias e corro para cá, mas 80% do que faço nasce aqui dentro. Enquanto espero um trabalho secar, invento algo para matar o tempo e isso acaba me levando a outra produção”. Quando ele não está em uma de suas inúmeras viagens, Estela conta sempre com a companhia de Pablo e assume que o convívio extrapola o apoio em tarefas braçais: “Ele acaba influenciando minha produção, principalmente nos trabalhos tridimensionais, por conta de sua grande experiência com montagens. É um encontro de grandes trocas”. Mesmo não fazendo parte da mesma geração artística dos vizinhos, Estela enfatiza o bom relacionamento entre eles: “Fico feliz em ter amigos por perto. Quando aluguei aqui, em 2001, o bairro era muito deserto. Tinha até medo de vir para cá!”. Preocupada com ruídos na captação, a conversa com Estela teve início com a interrupção da música que emanava dos alto-falantes espalhados pelo ateliê. Quando encerramos e nos despedimos, Iggy Pop e seus virulentos Stooges jorraram decibéis e o grito histérico do cantor invadiu o ateliê: “Now I wanna be your dog!”. Ao contrário do vizinho Paulo, o silêncio parece não incomodar o casal. Nuances de universos particulares.


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