Arnaldo x Antunes

Nunca me considerei um artista plástico. Acho mesmo estranho esse nome, que parece apontar ao mesmo tempo para a remodelação dos contornos do nosso corpo (cirurgias plásticas) e para esse derivado de petróleo que embala e/ou constitui a maior parte das coisas que consumimos.

Vejo-me antes como um poeta, que se utiliza eventualmente de processos e materiais das chamadas artes plásticas, para acrescentar outras camadas de significação às palavras.
[nggallery id=15232]

Mas também não gosto muito do termo poeta, que às vezes é usado num sentido apenas emocional, bem distinto do de um trabalhador da linguagem verbal.

Acho que gostaria mais de ser visto como um fazedor de coisas, que não se detém a uma linguagem específica.

Minha relação com as artes visuais se dá através da palavra. Creio que o trato com a expressão verbal é o território com o qual tenho mais intimidade, meu porto seguro. A partir dela, testando seus limites, aventuro-me em direção a outras linguagens, como que por uma necessidade de entoar.

Assim comecei a fazer canções, alterando as palavras através da inflexão melódica, da divisão das sílabas na cadência musical, do contexto instrumental que as envolve. Por outro lado, sempre me senti atraído por outra forma de entonação, expressa pela configuração gráfica. Pelos tipos, tamanhos, traçados, cores, disposição espacial das palavras e suas contaminações no desenho, na colagem e na fotografia.

Meu primeiro livro (OU E, 1981) era todo caligráfico, explorando as possibilidades expressivas do traçado manual das palavras. Os riscos, linhas, rabiscos e borrões tentavam imantá-las de possibilidades sensíveis que elas não alcançariam por si mesmas. Tratava-se de uma pasta, com os poemas soltos em vários formatos, dobras, cores e tipos de papel.

Esses atritos da palavra (que já carrega em si som, imagem e idéia) com outras linguagens, ofereciam-me novas possibilidades expressivas, que acentuavam seu aspecto material. O desafio era sempre a conquista de uma modulação adequada, que integrasse diferentes linguagens num amálgama indissolúvel.

O trato com a materialidade da linguagem verbal foi, para mim, uma das importantes lições dos poetas concretos, pioneiros na exploração de interfaces da poesia com outros códigos.

E a presença do corpo foi se impondo. A garganta inclui o canto, como o traço inclui o braço. Vieram os shows, performances, instalações.

O computador trouxe um novo repertório de recursos gráficos, assim como de possibilidades de edição e processamento de sons. O copy/paste me pareceu muito apropriado ao trabalho de colagem que já vinha desenvolvendo de outras formas no texto, na música e nas artes visuais.

No vídeo Nome, primeiro trabalho que realizei assim que saí dos Titãs, em 1992, pude unir o que vinha fazendo nas áreas da canção e da poesia visual. Essas linguagens se conjugaram na tela do vídeo, com a inserção de movimento na palavra escrita (fazendo-a tender à música, por se dar não apenas no espaço, mas também no tempo), graças aos programas de animação (e ao trabalho em equipe, com Kiko Mistrorigo, Célia Catunda e Zaba Moreau). Ao mesmo tempo, podia explorar a ocorrência simultânea do que se ouve com o que se vê/lê.

E vieram novos suportes para a poesia – o cartaz, o palco, o site, a roupa, a música, a dança, a projeção em raio-laser sobre os edifícios, os murais de cartazes tipográficos (lambe-lambes) colados e rasgados em várias camadas (como os que expus no projeto Arte Cidade, SP, 1994 e na 24a Bienal de SP, 1998), as monotipias caligráficas com tinta de carimbo em papel de gravura (exposição Escrita à mão, no Centro Maria Antonia, SP, e na galeria Laura Marsiaj, RJ), as instalações com letras de metal pintadas (Bienal do Mercosul, 1997) e os poema-objetos, de vários materiais diferentes (exposição Ler Vendo Movendo, Paço da Liberdade, Curitiba, 2009), alguns para serem movidos pelo espectador.

E também o livro, por que não?

E também a canção.

Na verdade, não me agrada muito uma denominação que foi se tornando corriqueira nas referências ao que faço – a de artista multimídia. Acho que o trânsito entre linguagens é um aspecto comum do tempo em que vivemos. Os meios digitais já romperam as barreiras da especialização. Qualquer artista hoje em dia acaba sendo um pouco multimidiático.

Talvez se possa ver nisso a retomada de um aspecto tribal; de um tempo em que não havia modalidades separadas de artes, nem havia arte separada da vida. Esse pode ser um dos sentidos que podemos apreender da expressão “aldeia global”, de Marshall McLuhan – o espírito de aldeia presente no mundo tecnológico atual.

Acho que estamos chegando mais perto da utopia de Oswald de Andrade, expressa na sua equação dialética: “1.º termo: tese – o homem natural; 2.º termo: antítese – o homem civilizado; 3.º termo: síntese – o homem natural tecnizado”.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.