Em outubro de 2002, algumas famílias paulistanas de baixa renda e sem moradia que faziam parte do MSTC (Movimento dos Sem Terra do Centro), ocuparam o emblemático edifício Prestes Maia, no número 911 da rua que leva o mesmo nome. O “gigante abandonado”, com duas torres – uma delas com 21 andares e a outra com 10 – pouco lembrava o edifício de outras épocas, quando abrigava uma fábrica de tecidos. Totalmente destruído e abandonado havia 18 anos, o Prestes Maia estava com o IPTU atrasado e as dívidas somavam mais de R$ 2 milhões.
Em pouco tempo, centenas de famílias, milhares de pessoas, integravam o novo “complexo habitacional”. Para que a convivência fosse possível, era preciso a colaboração mútua em questões como limpeza, alimentação, a parte elétrica e a água. As lideranças, naturalmente, foram se destacando e trabalhando para a legitimação da vida no Prestes.
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Em meados de 2003, artistas independentes e coletivos de arte foram adentrando os espaços do Prestes Maia, iniciando uma alteração da identidade e da realidade do local. Para os artistas, portas abertas nos prédios. Eles ficaram conhecidos dos moradores e trabalhavam também pela melhoria das condições de vida e, principalmente, pela recuperação de valores e da dignidade à qual cada uma daquelas famílias tinha direito. A arte se misturou com o ativismo que era combustível para as manifestações pessoais e coletivas que ocorriam nas mais diferentes formas, nos mais diferentes canais; uma espécie de guerrilha cultural. Estava armada a Ocupação Prestes Maia.
Em 2007 teve início a desocupação forçada, realizada pela polícia. Porém, as famílias voltaram ao local e ainda hoje permanecem no Prestes Maia, mesmo sem nenhum direito garantido.
Lembrando este movimento e a luta pelo direito à arte e moradia, no último fim de semana, dos dias 2 e 3 de março, o Museu de Arte do Rio (MAR) abriu suas portas trazendo, entre as quatro exposições disponíveis, uma mostra sobre a discussão da urbanização, do público e do privado inseridos em grande cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. A exposição O Abrigo e o Terreno – arte e sociedade no Brasil, traz, inclusive, “fragmentos artísticos” da Ocupação Prestes Maia. Da mostra participam artistas dos cerca de 120 coletivos que passaram pelo edifício paulistano.
Curioso citar, porém, que o espaço onde fica o MAR, a zona portuária do Rio, no centro, também aconteceu um controverso projeto de “revitalização”, que, assim como o ocorrido no Prestes Maia, não olhou para quem antes ocupava o espaço.
Na inauguração, que ocorreu na sexta-feira, 1 de março, aniversário da cidade do Rio de Janeiro, autoridades políticas como a presidenta Dilma Rousseff visitaram o MAR, mas não foram só eles que chamaram a atenção na festa. Quem também esteve no museu, porém apenas do lado de fora, foram centenas de manifestantes, ativistas, artistas e famílias que moravam na região que reclamam dos moldes do processo de desocupação do local.
Enquanto os manifestantes cariocas protestaram contra o museu do lado de fora, dentro dele artistas e famílias de São Paulo que moram e moraram no Prestes Maia, preferiram ocupar “filosoficamente” o espaço. O grupo paulistano, que chegou de ônibus na madrugada de sábado à capital fluminense, estava determinado a abrir um canal de conversa sobre a real situação dos atuais moradores do Prestes Maia e de outras ocupações urbanas e causar a reflexão sobre o tema entre os visitantes que passarem pelo MAR.
“Para a gente é um paradoxo estar dentro do museu nessa situação. Até conversamos com grupos do Rio e eles se recusaram a participar e foram até contra a nossa estada lá dentro, nós entendemos e respeitamos isso. Mas na nossa cabeça, não existe ocupar dentro ou fora, a ocupação tem que acontecer dentro e fora. O Museu é do Estado tanto quanto as ruas, somos uma faísca ali que pode explodir sim. Essa era nossa forma de protesto também”, ponderou Rodrigo Araújo, o Cabelo, um dos coordenadores da mostra O Abrigo e o Terreno – arte e sociedade no Brasil.
Túlio Tavares, principal articulador da exposição dos coletivos e figura importante na história da Ocupação Prestes Maia, também acredita que o museu pode e deve ser o espaço de manifestações e diálogo. “Temos um conteúdo importante que precisa ser divulgado, é uma situação social onde o mundo está sem controle, famílias são desocupadas de suas moradias de forma violenta, cachorro, bomba… Nós poderíamos ficar do lado de fora gritando ou acreditar que, entrando, abriríamos um canal de conversa. Estudantes vão passar por lá, autoridades vão passar por lá, a presidenta passou por lá. Nosso conteúdo é claro e radical, não fizemos concessões e ninguém também pediu isso. O espaço da arte sempre precisa ser ocupado e quanto menos fazemos, mais esse espaço vai ser tomado por um pensamento medíocre, a arte também envolve muita mediocridade”, terminou ele, que, para deixar muito claro para todos o significado de ‘ocupação’, gosta de repetir a frase: “Ocupar no sistema capitalista é aceitar que está tudo fora do controle”.
Porém, para muitas pessoas, mais do que o arte ou protesto, o que estava nas paredes do Museu de Arte do Rio era também o relato de sua vida. Mariah Leick foi uma das artistas guerreiras que transformou a ocupação do Prestes Maia em realidade. Uma das líderes da primeira ocupação, ali ela criou seu filho Brian e teve, por aquele momento, sua casa. ”Para mim a entrada dos coletivos foi mais uma abertura política. Essa articulação acabou mostrando que nós não somos um bando de desocupado, maconheiros e vagabundos que ficamos invadindo prédios. Entraram 120 coletivos e a programação cultural, as intervenções, traziam pessoas. Teve um final de semana que mais de 600 pessoas passaram por lá”, lembra ela. Consciente, ela sabe exatamente o que se passa por trás das ocupações e das desocupações. “Não acho certo ficar invadindo estabelecimento dos outros, mas eu acho errado eu não poder ocupar um prédio abandonado. Invadir, arrombar é crime, ocupar não é crime. Se eu não pago meu IPTU num barraco, na favela, eu perco ele, mas o cara deve milhões no prédio no centro e não perde”, queixou-se.
Para Mariah, porém, ter a sua história retratada nas paredes do MAR não é nada confortável, muito pelo contrário. Para ela, todo o contexto que envolve o museu, principalmente sua construção na área revitalizada do porto, obrigou uma certa “higienizada na história”, e ela é contrária a essas intervenções tanto por parte dos governos como da iniciativa privada. Apesar disso, ela considera importante se o espaço for capaz de chamar a atenção de mais pessoas para a realidade das ocupações.
Mariah e todas as outras famílias conferiram sua história nas paredes do MAR. Para eles, o sábado, dia 2 de março, quando foram convidados para conferir o resultado da exposição, não era o dia da abertura do museu ou da apreciação da arte, mas uma chamada à realidade, um grito de “olhem para a gente”.
Sobre a exposição, Paulo Herkenhoff, diretor e curador do MAR, afirmou que é importante abrir o canal através da arte para essas realidades. “O museu não é um espaço de alienação, mas é um espaço de ficção. Esse é um museu da cidade, para mostrar as questões da cidade, não apenas para se mostrar a alegria de ser carioca”, afirmou. Quando questionado sobre a “revitalização” ocorrida no próprio museu, porém, evitou polemizar.
Olhando “essas realidades” – que são as suas – retratadas nas paredes do MAR, os moradores e ex-moradores do Prestes Maia rondavam entre as mostras do museu com a esperança de que essa revisita à história da Ocupação gere uma nova discussão sobre o assunto e traga, talvez, alguma segurança a respeito de seus futuros e o de suas famílias.
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