Caminho pela areia da praia, aberta aos imprevistos que a arte efêmera nos proporciona. Nessa paisagem de galeria a céu aberto só importa o homem, o mar, o vento, o tempo e a diversão, todos protagonistas principais do evento ArtePraia que ocorre anualmente em Natal. A arte, por definição, foi sempre uma prática que rompeu com os cânones anteriores, antecipou novos rumos e transgrediu pautas. As instalações performáticas contidas no Projeto ArtePraia, uma iniciativa da Casa da Ribeira, são uma forma expressiva de como os códigos vigentes se enfrentam com o novo e as sucessivas surpresas. Embora não seja uma manifestação de performances, opera no mesmo sistema. Resultado de um edital que atraiu autores com 197 projetos inscritos, ArtePraia selecionou somente seis para ocupar em dois finais de semana no mês de junho as praias do Meio, Forte, Redinha e Ponta Negra. Sob a curadoria de Gustavo Wanderley, o Edital ArtePraia, terceira edição, contemplou artistas e coletivos de Pernambuco, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás.
Os trabalhos, todos efêmeros, foram executados com energia e bom humor, mesmo sob chuvas torrenciais que obrigaram a cidade a decretar estado de calamidade pública ou sob um sol translúcido e intenso, isso sem falar nos avanços e recuos das marés.
As areias atuaram em um plano dinâmico, onde a arte passageira em constante movimento agiu solta ao vento, mas carregada de emergências estéticas. A sucessão de transgressões eclodiu em fins de semana animados, por torcedores brasileiros e estrangeiros fanáticos por futebol que se misturavam pela cidade antes dos jogos na Arena das Dunas.
Todos os trabalhos foram executados sem levar em conta as relações sociais preconcebidas. O frequentador usual das praias e os banhistas estrangeiros emolduraram as obras em um encontro da arte com o homem ainda desabituado de fruir arte em galerias ou museus. As expressões corporais e a participação do público com um leque de atitudes não habituais atuavam como valor desalienante e sublinhavam o imediatismo entre a representação e o receptador.
A dimensão mágica da poética da paisagem se manifestava sem dificuldades no trabalho Caldo de Carne, do Coletivo Indigestão, de Minas Gerais. A proposta antropofágica aconteceu na Praia do Meio, com umpúblicoanimado a participar dolúdico caldode gente, preparado dentro de uma piscina de plástico. O ensopado recebia o público e ingredientes culinários, como temperos, condimentos, verduras e legumes. Os artistas, provenientes de Brasília e Minas Gerais, com pouco contato com o mar, promoviam uma divertida manhã de um fim de semana onde a magia criativa e efervescente transcenderam a realidade.
Estética como expressão e linguística geral foi o mote de Glayson Arcanjo, de Goiânia, com a proposta ParAmar, em que transformou a superfície da areia em um campo aberto à escrita. Em um primeiro momento, o artista coletou informações sobre pessoas, o mar e criou frases e poesias. Com as letras do alfabeto moldadas em forminhas, eles propuseram uma ação “literária” com o público.
No conjunto, todos os trabalhos detinhamrápidas anotações de histórias ou experiências pessoais e que tinham o estatuto documental. Em Volta para o Mar Oferenda, o carioca Guga Ferraz construiu um tobogã com sacos de areia e uma grande lona na beira da praia. A ideia era proporcionar um deslizar na paisagem e criar relações afetivas com a praia, fugindo da objetividade do dia a dia.
A herança geométrica da arte brasileira projetava-se na instalação Dois por Dois, do carioca Igor Vidor, que criou pares de piscinas quadradas (2 x 2), uma de areia e alto relevo e outra cheia de água em baixo relevo com a areia da praia. A ideia do preenchido e do vazio se revezava na ambivalência do discurso visual. Plantação da Forma do Vento, do catarinense Joelson Bugila nos reportou à repetição das leituras de consumo. A “plantação” de 1.350 boias de espumas coloridas fez alusão ao canavial com formas, cores e movimento carnavalizados. Todo o processo de produção deixou sua marca e essa instalação se deixou levar por circunstâncias do entorno. Dezenas de banhistas aderiram à performance lançando-se ao mar com os “macarrões” flutuantes.
Nesse conjunto de obras, que compuseram o ArtePraia, o meio já não éa mensagem. Não existe mais meio, somente trânsito de informações entre suportes, interfaces, conceitos e modelos. Paleta Complementar, do paulista Fernando Limberger estabeleceu relação direta com o ambiente. Durante o período de aproximadamente 6 horas, entre as marés baixa e alta, três círculos coloridos de 10 m de diâmetro foram desenhados na areia da praia e ordenados triangularmente. A instalação sofreu as alterações das marés, do vento forte e contínuo e do ir e vir dos curiosos.
Inviabilidades foi o dispositivo encontrado pelo Coletivo Lamparina, do Rio Grande do Norte para construir escadas e rampas com areia, criando acessos impossíveis. Os objetos com formas semelhantes aos dos objetos reais estabeleceram um jogo crítico do entorno. Essa questão nos leva a compreender as imagens como transformação física do espaço urbano e do homem como dependente do ambiente que ele mesmo destrói.
Sob a curadoria de Gustavo Wanderley, ArtePraia chega à sua terceira edição com o objetivo de fazer com que a produção brasileira transcenda fronteiras e chegue, é claro, às belíssimas praias de Natal.
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