Artista transcendental

Foto: Leticia Moreira / Brasileiros
Foto: Leticia Moreira / Brasileiros

Rosângela Rennó é conhecida por ser uma fotógrafa que não fotografa, mas sua notoriedade vem por tratar a imagem como uma das questões centrais em sua obra. O que poucos sabem é que, se fotografa pouco, Rennó, aos 51 anos, produz muitos vídeos e ela mesma costuma fazer as gravações.

Esse envolvimento com o vídeo é um tanto recente em sua carreira, tendo início com Vera Cruz, atualmente em cartaz na mostra Memórias Inapagáveis. Com curadoria do espanhol Agustín Pérez Rubio, no SESC Pompeia, em São Paulo, a exposição é organizada a partir de 19 obras do acervo do Videobrasil.

“Esse trabalho foi uma encomenda de Emanoel Araújo para o módulo da carta do Pero Vaz de Caminha, na Mostra do Redescobrimento, em 2000”, conta Rennó. 

A Mostra do Redescobrimento foi um dos eventos centrais em torno das comemorações dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, organizada em três pavilhões no Parque Ibirapuera, reunindo 15 mil obras distribuídas em 13 módulos e selecionadas por 16 curadores, entre eles Araújo.

“Ele imaginou que eu fosse apresentar fotografias, mas, relendo a carta, me dei conta de que era um relato longo e muito rico em detalhes, com um poder imagético incrível: parecia ter nascido para ser filmado. Se por um lado ela tinha de dar conta de informar o Rei, por outro, ela tinha picardia, como falar da nudez das índias, compará-las com as mulheres portuguesas”, diz.

VERA CRUZ, 2000, TAKES DE VÍDEO, 3‘11’’
VERA CRUZ, 2000, TAKES DE VÍDEO, 3‘11’’

O resultado foi um trabalho bastante experimental: 44 minutos do barulho do mar e do vento e apenas as legendas visíveis, diálogos baseados na carta inaugural do Brasil. O tempo, de acordo com a artista, teria apagado as imagens originais: “Minha ideia era imaginar de que forma uma película atravessaria 500 anos e, como sempre em meus vídeos, os textos são tão importantes quanto as imagens”.

Com Vera Cruz, Rennó inaugurou uma série de vídeos intitulada Turista Transcendental, criada sempre a partir de suas experiências em locais exóticos, como o deserto de sal de Uyuni, na Bolívia, a Ilha de Reunião, no Oceano Índico, as pirâmides de Teotihuacán, no México, ou as linhas de Nazca, no Peru. Para ela, o turista transcendental funciona como um álter ego. “O viajante do século XXI, em contraste com o viajante do século XIX, é mais ‘turista’ do que ‘viajante’, ele não tem muito tempo e passa muito rapidamente por onde anda. O ‘turista transcendental’ documenta os locais por onde passa, agregando experiências que traz de outros locais, como se seu olhar e seus vídeos pudessem atravessar as fronteiras geográficas, culturais e até religiosas”, conta.

Assim, em Yanğyin Bosphorus (2012), por exemplo, Rennó filmou as margens oriental e ocidental do estreito de Bósforo, na Turquia, sobrepondo-as, transformando uma viagem que dura três horas em um vídeo com metade desse tempo. Com certa ironia, ela associa o Yin e o Yang da cultura chinesa – os opostos que se complementam – ao hibridismo entre oriente e ocidente que caracteriza a cidade de Istambul, dividida entre a Europa e a Ásia.

Nos vídeos da série Turista Transcendental, Rennó cria trabalhos contemplativos que remetem a um caráter místico, expresso já no título. Muitos artistas da videoarte, aliás, se utilizam dessa poética, como o norte-americano Bill Viola ou o chileno Juan Downey (1940-1993), um dos artistas da 31a Bienal de São Paulo. “Existe um certo tabu na arte contemporânea em relação às questões que envolvem o esoterismo e a religiosidade, por exemplo. É muito difícil falar de algo místico no Brasil, por isso acho importante aplicar uma certa ironia nesses trabalhos”, comenta Rennó.

Vera Cruz rendeu a Rennó o prêmio do 13o Festival Videobrasil, em 2001. Na época, a premiação motivou acalorados debates em redes sociais, por ter sido entregue em um vídeo sem imagens convencionais. “Esse é meu trabalho em vídeo que mais exponho; ele já existe em versões ‘legendadas’ em sete línguas diferentes.”

Ao realizar um documentário sem imagens, Rennó reforçou sua poética em questionar a maneira de se observar o mundo de forma convencional. Afinal, é um tanto inesperado que para falar de memória a artista faça com que imagens sejam de difícil visibilidade, como ocorre em um de seus trabalhos mais famosos, a Série Vermelha, que fez parte da representação brasileira em Veneza, em 2003. Nela, jovens em roupas militares, de nazistas a soldados brasileiros, receberam um vermelho tão saturado que quase não podem ser identificados.

“O tempo borra, apaga inexoravelmente a lembrança que temos dos fatos, dos acontecimentos. Na verdade, é necessário apagar coisas da sua memória, senão você enlouquece. Não é possível viver como ‘Funes, o memorioso’, você não conseguiria suportar o mundo”, comenta Rennó, referindo-se ao personagem do conto homônimo de Jorge Luis Borges, a respeito da ausência de imagem em Vera Cruz.

Takes de vídeo, Uyuni Sutra, Rosângela Rennó, 2011, Vídeo Monocanal, 3`00”
Takes de vídeo, Uyuni Sutra, Rosângela Rennó, 2011, Vídeo Monocanal, 3`00”

É com um novo vídeo da série Turista Transcendental que Rennó participa, agora em setembro, de uma exposição em Miami na CIFO – Cisneros Fontanals Art Foundation, financiado pela própria instituição. Realizado na Nigéria, em 2010, o vídeo é um plano de sequência, filmado a partir de uma câmera estática alocada entre dois carros. Nesse trabalho, Rennó simula um diálogo dos dois veículos em legendas extraídas de canções de Fela Kuti e Tony Allen, dois expoentes do Afro Beat.

Animar objetos, aliás, foi o que Rennó fez na Fundação Eva Klabin, entre abril e julho desse ano, na mostra Circulo Mágico, parte do Projeto Respiração, organizado por Marcio Doctors. Na sofisticada casa-museu carioca, a artista fez com que peças do acervo, de esculturas e pinturas a sapatos “falassem” textos irônicos a partir de dispositivos sonoros, acionados com a aproximação dos visitantes.

Atualmente, Rennó está em cartaz na Galeria Vermelho, com trabalhos novos e inéditos no Brasil, mas não há vídeos. Uma das instalações que ela apresenta é Rio-Montevideo, criada no Uruguai, em 2011, a partir do acervo do jornal El Popular. O diário, que circulou entre 1957 e 1973, foi fechado pela ditadura e 48.626 negativos foram escondidos por Aurelio González, encarregado da seção de fotos, e permaneceram desaparecidas por quase 33 anos.

Encontrado em 2006, esse acervo passou a ser restaurado pelo Centro de Fotografía de Montevideo e usado por Rosângela Rennó, a convite da própria instituição. A obra é composta por 14 projetores de distintas épocas – o uso de antigas máquinas de produção da imagem é recorrente em sua obra –, que disparam uma pequena seleção de fotografias ao som da Internacional Socialista. Exibir fotos antigas em processo de desuso pode soar um tanto nostálgico, mas não para Rennó: “Quando uso esses objetos ‘em desencanto’, não é para rememorar; eu prefiro imaginar que se trata de uma espécie de memória do futuro, já que o anacronismo entre todos esses objetos transforma o espectador em uma espécie de personagem de ficção científica, em um tempo improvável projetado no futuro”. Não sendo um vídeo, a obra não parece ter sido feita pelo ‘turista transcendental’, mas bem que poderia.

Serviço
Memórias Inapagáveis
Sesc Pompeia
R. Clélia, 93 – Vila Pompéia, São Paulo
Até 30 de novembro, de terças a sábados, das 9h às 22h, e aos domingos, das 9h às 20h


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