O presente texto adianta algumas ideias desenvolvidas para o catálogo, em breve edição, da exposição das pinturas cegas de Tomie Ohtake, inaugurada em abril de 2011. A forma de glossário estabelece uma ordem para assuntos esparsos, mas não esgota a pauta do texto final.
Acaso
A cantoria da peleja do cordel tem um ritmo, sua poesia tem rimas e regras. O ritmo dos cordelistas implica em aproveitar a fala do oponente como produção aleatória, imprevisível e imponderável, de estímulos que devem ser consistentemente aceitos, respondidos e produção de novos estímulos. As pinturas cegas substituem a imprevisibilidade do lance de dados sobre o espaço. Tomie Ohtake parece escutar o cego Aderaldo…
Clarice
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” (Lucretius. The De Rerum Natura of Titus Lucretius Carus. Trad. Rolfe Humphries. Bloomington: Indiana University Press, 2008, p. 165, Book V, 158-202). Comentarista de Lucrécio, Gordon Lindsay Campbell acentua que in luminis ora “é uma frase épica descrevendo o nascimento como o cruzamento da fronteira da escuridão para a luz” (Campbell, Gordon Lindsay. Lucretius on Creation and Evolution: A Commentary on De Rerum Natura. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 45, Book V, 772-1104).
Tomie Ohtake parece afirmar que a cegueira, no entanto, não é permanecer longe da luminis ora, mas cruzar incessantemente seus limites, de um lado para outro. Na Carta Sobre os Cegos para uso dos que veem (1749), Diderot discute a percepção visual e as respostas do aparato sensível do homem à cegueira. Se a percepção decorre da experiência individual, também entende a visão como experiência histórica. As manobras retóricas da Carta afirmam a importância do olhar. Sua dúvida iluminista levou-o à demolição da metafísica, enquanto os avanços da medicina cirúrgica devolveram a visão a cegos de nascença (DENIS, Diderot. Carta Sobre os Cegos para uso dos que veem. 1973, p. 123). Para Diderot e para a arte contemporânea, ver não é, necessariamente, compreender o mundo. A pintura de Ohtake problematiza essas questões.
Historiografia
Nunca houve uma exposição só destas obras. O objetivo primordial do esforço crítico e historiográfico é tornar visível esse corpus de “pinturas cegas” para sua mais efetiva inscrição na história da arte. Para tanto, se elabora uma abordagem de questões desconhecidas suscitadas pela artista, o contexto histórico em que foram produzidas e o aparato conceitual que entrelaça o conjunto. O fato de Ohtake não dar título a qualquer de suas pinturas desde a década de 1950, levou segmentos de sua produção a certa invisibilidade, posto que toda sua produção flui como um oceano de obras inominadas. Essa indiferenciação pelo nome ausente também facilitou o desconhecimento de questões bastante particulares de sua produção pictórica e, como consequência, o debate teórico sobre seu significado crítico fica incompleto.
Mário Pedrosa
No final da década de 1950, Pedrosa retorna do Japão depois de uma pesquisa em história da arte para formar um diálogo com a produção ocidental. Passa a reivindicar que os artistas brasileiros dessem atenção à cultura japonesa: a caligrafia, a pintura sumi, a arquitetura, o espírito Zen, entre outros aspectos. Ohtake, no entanto, evita a relação formal entre pincelada de escritura ideogramática. Ela estabelece relações entre valores e procedimentos Zen e a constituição do signo pictórico em seu processo de constituição de linguagem. Duas sugestões de Pedrosa seguidas por Ohtake: ler o filósofo Merleau-Ponty, a cuja fenomenologia a arte brasileira muito deve, e pintar de olhos vendados. Tomie alternava, na elaboração de cada quadro, períodos de cegueira e de visão. As vendas nos olhos durante o processo da pintura tinham o sentido de realizar uma ação pictórica no limite da percepção. O pincel não buscava demarcar território ou produzir qualquer figuração. Tratava-se do puro fenômeno da passagem do tempo no processo Zen, através do ato de pintar. O paradoxo das pinturas cegas é a poética da produção de linguagem e de conhecimento que se apresenta como experiência do não-ver, do não-saber e da intuição.
O não-ver na história da arte brasileira (quase-cegueira)
As pinturas cegas têm afinidade com as Fotoformas de Geraldo de Barros, a Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do cordelista Firmino Teixeira do Amaral, as Máscaras Sensoriais de Lygia Clark, o Bólide Olfático de Hélio Oiticica, as Urnas Quentes de Antonio Manuel, o Espelho Cego de Cildo Meireles, a estética do buraco em Anna Maria Maiolino, o Matisse com talco de Waltercio Caldas e a Antropologia da Face Gloriosa de Arthur Omar.
Pintar às cegas
Pintura cega ou a possível conceituação de uma pintura escotomática. Nos anos 1960, Tomie Ohtake confrontou sua pintura com questões óticas e oftalmológicas para explorar o estatuto do saber pictórico, ao vedar os olhos para pintar: ajustar seu olhar ao ponto cego e a partir dele se engajar na experiência pictórica. A essas obras denominamos, conforme o testemunho da artista, de “pinturas cegas”, feitas sob um estado de não-ver. O crítico Mário Pedrosa e artistas como Willys de Castro e Mira Schendel interessaram-se por essa experiência. As pinturas cegas formam um corpus estimado em pouco mais de trinta obras, uma singularidade na história da arte brasileira. O trabalho das pinturas cegas, seja com o punctum cecum ou com a cegueira, é sempre uma operação crítica sobre o ocularcentrismo que rege a modernidade. O não-ver é irmão do não-saber de Bataille. Por tudo isso, uma operação escotomática, como a cena do corte do globo ocular pela navalha no filme Un Chien Andalou, de Luis Buñuel, e as imagens neuro-oftalmológicas de Louise Bourgeois.
Pintura não-geométrica ou pintura a-informal
No início da década de 1960, quando a arte brasileira aprofunda o desafio da construção mais densa de uma alternativa não geométrica para a pintura, Tomie Ohtake oferece um novo paradigma com as pinturas cegas. Na dicotomia entre razão e expressão, Ohtake propõe o informe, nem lá nem cá. À parte do embate, as pinturas cegas – nem geométricas nem informalistas – são operações de linguagem para conhecimento da natureza da visão e de seu peso na arte.
Produtividade
A cegueira é produtiva: o limite como potência. À cegueira produzida corresponde o olhar construído no informe.
Tempo
Para um pintor que se envolve em real escuridão física no processo de pintar, de pouco vale tentar se situar no espaço, se agarrar nele ou dominá-lo. Seu imperativo há que ser o tempo e Tomie Ohtake se propõe à pura transiência do ato para além de seu registro físico na superfície ao vir-a-ser e a transitoriedade do mundo-que-passa da cultura do Ukiyo-e do período Edo. Outra noção temporal das pinturas cegas é, sob a visão impedida, a duração. Aqui, Ohtake problematiza Henri Bergson.
Zen
O Zen de Ohtake parece converter os Quartetos de T.S. Eliot em experiência: “The inner freedom from the practical desire.” A assimbolia, a a-significação, o vazio Sunyata mais que o vazio sufocante de Samuel Beckett.
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