Uma imagem se crava em nossa memória após vermos a harmoniosa sequência de oito vídeos distribuída ao longo das cinco salas do pavilhão dos Estados Unidos na Bienal de Veneza. A imagem indelével é esta: a artista, em pé na paisagem verdejante, vestindo uma espécie de toga romana drapeada, simula tocar harpa dedilhando as folhas longas e verticais de um arbusto. Talvez essa seja a imagem-síntese da profunda ligação de Joan Jonas com a natureza, o vento, as águas e os animais. Também, na mesma lírica medida de ressonâncias arcádicas, é índice da sintonia de sua obra com a música, a dança, a literatura e a mitologia.
No contexto áspero da curadoria-geral de Okwui Enwezor, dominada pela sombria denúncia das tragédias que assolam a humanidade, Joan Jonas adota o diapasão inverso – destaca a bela e frágil natureza que ainda resiste aos flagelos soltos no mundo pelo ser humano. Bem a propósito, no centro do percurso da mostra, instalou uma série de espelhos, para que a refração/reflexão acrescente novas camadas de significados às imagens já vistas ou por ver, fazendo refluir o protagonismo da natureza para o espectador.
Jonas faz seu trabalho cantar uma delicada e polifônica ode ao planeta, reunindo cacos visuais do que de mais frágil e belo ele ainda possui. Em todos os vídeos há crianças. Muitas e alegres, ruidosas crianças. E abelhas, peixes, baleias, águas límpidas, florestas e mais florestas. Um cavalo e seu tratador nadam um balé sinuoso junto às ondas da praia. Uma foca com a cabeça fora d’água nos vê com doçura e fecha os grandes olhos pretos para o mergulho. Um convite? Há muitas camadas de imagens e significados, em sutil trama de referências e sobreposições de tempos.
A artista nova-iorquina, aos 79 anos de idade, revisita sua extensa produção de mais de quatro décadas de pioneira da videoarte e da performance (muito antes de Marina Abramovic surgir, diga-se) e extrai desse acervo inúmeros fragmentos (alguns de filmes analógicos em preto e branco, dos anos 1960), que recombina com imagens de trabalhos a cores dos anos 1970 e 1980, e mesmo vídeos digitais mais recentes.
Parte das imagens é inédita e resultou de workshop que a artista (e professora) fez com crianças. Elas agem como fios condutores entre os diversos vídeos e frisam as interrogações do futuro. É desse universo, em constante intercâmbio de tempos, meios, personagens e planos que surge They Come to us Without a Word (em tradução livre, eles vêm a nós sem dizer uma palavra), a aula magna de sutilezas perceptivas que a veterana artista norte-americana, nascida em 1936, criou para o pavilhão oficial dos EUA em Veneza.
O núcleo dessa obra é Reanimation, que Jonas estreou como performance, em 2010, no MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA, onde lecionou durante 15 anos), e apresentou na Documenta de Kassel, Alemanha, 2012. Baseada em lendas nórdicas sobre a fragilidade da natureza, a proposta foi acrescida de reflexões sobre a transformação ambiental causada pelo aquecimento global. Ex-aluna da coreógrafa Trisha Brown, Jonas faz intervenções harmoniosas ao longo de todos os vídeos.
Joan Jonas é amplamente festejada na Europa. Além de muitas individuais em instituições de prestígio, participou de seis edições da Documenta. Autora de livros de referência sobre história e teoria da performance e da videoarte, ela nunca teve boas relações com o mercado. Sua geração não deu valor a essa inserção, por sinal. Assim como outra notável artista que ocupou o pavilhão dos EUA (1993), a então octogenária Louise Bourgeois, a veterana Jonas emerge inteira e forte nos ombros de sua obra. Ambas feitas à margem do mercado pesado, aquele que influi no frágil equilíbrio ambiental da arte.
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