No começo do novo século, a pesquisadora e curadora inglesa Charlotte Cotton afirmava: “Estamos vivendo um momento excepcional para a fotografia, pois o mundo da arte a acolhe como nunca o fez e os fotógrafos consideram as galerias e os livros de arte o espaço natural para expor seu trabalho”. Em toda a história da fotografia, vamos encontrar momentos da supremacia da linguagem perante outras formas de expressão, mas, sem dúvida, ela hoje se torna protagonista em bienais, exposições de arte, galerias e livrarias. Os fotolivros explodem, os festivais se espalham pelo mundo todo e esta expressão artística também faz sua entrada de forma cada vez mais incisiva na academia.
Mais do que nunca, a reflexão sobre o fazer imagético se faz necessária também para entender essa avalanche iconográfica que nos invade diariamente e a míriade de possibilidades do fazer fotográfico, além das inúmeras plataformas nas quais ela se faz presente. Mas esse movimento se perde ao longo da história. Não podemos nos esquecer das primeiras manifestações do início do século XX, como o Photo-secession de Alfred Stieglitz (1864-1946) nos Estados Unidos, a cidade de Paris vista pelos olhos de Eugène Atget (1857-1927), os trabalhos de Walker Evans (1903-1975) durante a Depressão norte-americana dos anos 1930, e, sem dúvida nenhuma, o fundamental ensaio de Robert Frank (1924), The Americans, no final dos anos 1950. Momentos em que os profissionais da área chamam a atenção para a criação e expressão fotográfica, e ela se liberta de amarras e regras reducionistas, abrindo-se para a liberdade criativa. Discussões que estão no cerne da própria de sua invenção.
Sarah Meister, curadora do Departamento de Fotografia do MoMA, em Nova York, explica: “Ao longo da história, esse potencial é periodicamente redescoberto, e a fotografia ‘documental’, não embelezada, adquire um significado nitidamente contemporâneo. No momento em que comecei a pensar criticamente a respeito, não havia dúvidas de que as fotografias, até mesmo as documentais, podiam ser registros de expressão artística”. E se na contemporaneidade essas questões parecem já superadas, estamos diante de novas proposições filosóficas para tentar entender nossa produção. A pesquisadora e curadora brasileira Georgia Quintas nos lembra de que “a fotografia já deu conta, enquanto estatuto ontológico, de transcender a si própria, ao reinventar-se a partir de si. Esse é um exercício que a arte exige de mover-se sempre diante do mundo e de inquietar-se sobre o pensamento”.
A linguagem mudou, transformou-se e assumiu liberdade de criação e possibilidades, e a dificuldade hoje talvez seja entender esse volume de produção. “É um desafio permanecer atento às diferentes manifestações fotográficas. É um momento particularmente emocionante para ser um curador da área. É um desafio que a maioria dos que eu conheço está feliz de aceitar”, afirma Sarah.
O que se percebe é uma forte busca de identidade, a redescoberta de laços afetivos e de uma memória latente. Uma fotografia que não é mais épica, que não procura dar conta de explicar o mundo, mas se importa com micronarrativas, pequenas histórias. “Há uma forte conexão contemporânea com os trabalhos que envolvem memória – seja a partir de registros antigos ou da construção poética dessa abordagem –, as relações afetivas, familiares, a nostalgia por lugares, espaços das mais diversas referências geográfica ou físicas. Olhares sobre microuniversos”, diz Georgia.
Essa “naturalidade” da imagem aparece também no fotojornalismo contemporâneo, sempre um contador de histórias, mas talvez mais preocupado com os protagonistas das histórias do que no factual. Muitas dessas questões podem estar também relacionadas à facilidade de postagens nas redes sociais e, portanto, à redescoberta também da fotografia como objeto em si. “Algo que tem me intrigado é o renovado interesse no objeto fotográfico […]. Provavelmente, há muitas razões para isso, mas certamente um dos fatores é a proliferação de imagens que circulam exclusivamente em forma digital”, comenta Sarah.
A fotografia cada vez mais presente, aficcionados e colecionadores se voltam para ela e isso também ajudou a retomada de artistas já consagrados pela história e acervos redescobertos. “Nosso tempo deixará um legado uma ‘galáxia’ de imagens e questões filosóficas sobre estas imagens, de uma magnitude que não consigo vislumbrar a proporção. É preciso pensar profundamente nesse volume enquanto arquivo, na medida em que isso se tornará memória”, conclui Georgia.
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