O escocês Charles Esche parece ter captado os sentimentos difusos dos movimentos sem pauta definida que varreram o Brasil do ano passado para cá. Assim, em vez de um tema central, o curador geral da 31a Bienal de São Paulo propôs aos artistas desenvolverem trabalhos que retratassem a realidade do momento – convulsão social, cultural, política e religiosa –, que, de alguma forma, representassem, pela arte, mudanças de paradigmas, substituição de valores na sociedade. A esse desafio deu o nome Como Falar de Coisas que não Existem.
O conceito, e não um tema definido, éuma invocação poética com toda a carga emocional e exploratóriado território sem limites que é a Bienal, onde as urgências éticas e estéticas impulsionam artistas e curadores para fora das fronteiras da comodidade e da temporalidade. O bem-humorado Esche já vinha insinuando, desde as primeiras entrevistas no Brasil, qual seria o caminho a trilhar: “O mundo carece de imaginação e a arte tem a oportunidade de propor alternativas”.
A proposta não éoriginal, mas pertinente. A equipe de Esche, formada por Galit Eilat, Nuria Enguita Mayo, Pablo Lafuente e Oren Sagiv, e os curadores associados Benjamin Seroussi e Luiza Proença querem invocar as potencialidades da arte e sua habilidade de refletir e influenciar a vida, o poder e a crença. “Hoje, somos dominados por fatos, por números. Mas os números não podem descrever a condição humana. Já a arte trabalha com a imaginação, com a possibilidade de que algo pode existir mesmo que não exista.”
Talvez, essa manifestação de Esche soe mais como algo retórico, um arroubo ingênuo, romântico. Mas, convenhamos, não deixa de ser generoso, ousado até, propor a artista desconhecido a oportunidade de fazer o que nunca lhe foi oferecido em outras exposições. Os trabalhos dos artistas convocados pela equipe de curadores, na faixa etária média de 40 anos, privilegiam histórias pessoais, jogos interativos e o incessante cenário de violência social pelo mundo.
A 31a Bienal transita por essas fronteiras da memória. Em um estalo, o visitante que chega ao 2o andar éatraído pela obra do jovem Etcétera, coletivo interdisciplinar argentino composto por artistas visuais, poetas, atores e artistas performáticos. Atualmente, Loreto Garín Guzmán (Chile) e Federico Zukerfeld (Argentina), cofundadores do coletivo, fazem uma releitura de Palavras Ajenas, obra do argentino León Ferrari, que morreu no ano passado. Naquela sala ainda estão vivas imagens que lembram atrocidades do mundo contemporâneo. Ali também perdura uma zona cinza, onde León Ferrari atuou interrogando o sistema, a igreja católica, com seu inferno e purgatório, um espaço soterrado de silêncio, arquitetonicamente muito bem resolvido, que trabalha a memória presente na medida em que a história oficial se nega a legitimá-la. Obras “religiosas” de León são o abre-alas da instalação da dupla onde Igreja e Estado se fundem nessa instabilidade que possibilita a vigência e a urgência das indagações do artista, com a participação do público, por meio de telefones instalados em um minianfiteatro, o que outorga uma extraordinária atualidade ao trabalho de León.
Na esteira dos conceitos em que a Igreja entra no campo filosófico, a israelense Yael Bartana encara o Inferno, em uma resposta cinematográfica à construção de uma réplica em tamanho real do Templo de Salomão, por uma igreja brasileira, em São Paulo. As imagens se sobrepõem em texturas quase picturais sobre a construção (real) do Templo e a sua destruição (ficcional). Assinam o projeto Yael Bartana e Benjamin Seroussi que contaram com populares no elenco das filmagens.
Lembro-me de que na primeira entrevista coletiva de Esche, ele enfatizou a necessidade de voltar sua atenção para as urgências locais. Confesso que me senti aliviada, afinal ele confessou que pouco conhecia arte brasileira. Foi a partir dessa intenção que o convite chegou a Eder Oliveira, em Belém do Pará. Lá, bem distante do eixo Rio-São Paulo, as urgências ecológicas dividem território com as topologias urbanas que relatam um mundo real de violências.
Seus personagens, retratados nas paredes do 1o andar do prédio da Bienal, foram selecionados pelo artista das páginas policiais dos jornais de Belém. “São biótipos recorrentes, mistura de índios, negros, brancos, todos pobres que, cotidianamente, são presos, alguns com carteiras assinadas.” Para Oliveira, o sistema classifica esses indivíduos pela aparência e não os vê como pessoas. É como escreve Foucault em seu livro Vigiar e Castigar, em que, baseado no controle social através da conjugação de várias técnicas de classificação que se ramificam pelas sociedades, os indivíduos são controlados pelo sistema, sem levar em conta sua identidade.
A Bienal prioriza a condição contemporânea e como a arte pode criar e acionar histórias, indivíduos e comunidades. Violência, solidão e uma luz poética que vêm de uma conjugação do interior e exterior dão volumetria aos andares brancos, limpos e racionalistas de Niemeyer. Como diria o escritor chileno Roberto Bolaños: “A paixão é geometria, rombos, cilindros, ângulos…”. Mais da metade dos 82 projetos, de autoria individual ou coletivo, envolvendo mais de cem participantes e cerca de 250 obras, é inédita e idealizada especificamente para esta edição. Alguns são resultado das residências feitas por artistas internacionais em cidades brasileiras.
Mesmo antes da abertura, chama a atenção o texto da obra Apelo, das brasileiras Clara Ianni e Débora Maria da Silva: “Levaram nossos filhos, nossos irmãos, nossos pais, nossos avós e tataravós, todos mortos no mesmo dia, esse dia longo que se repete pelos anos e insiste em não acabar. Foram todos mortos por essas mãos que mudam de corpo, mas são sempre as mesmas a nos fuzilar pelas vielas, a nos ferir no estalar do açoite. Mãos de capitão-do-mato, que vive atrás de cada homem fardado…”.
Na Europa, há quem estranhe o comportamento da egípcia Anna Boghiguian, que vive e trabalha no Cairo e em outras cidades, mantendo um cotidiano nômade, com deslocamentos para a Índia e a Europa. Durante suas viagens, ela trabalha freneticamente e, como um narrador de intimidades, desenvolve desenhos e colagens, linhas muitas vezes misturadas com escritas, espécies de diários. Para ela, o Cairo é sua cidade e seu exílio, por onde ela cruza desde os bairros finos das galerias de arte aos mais populares, em uma jornada épica como viajante da arte.
Como não só de jovens se faz uma bienal, Esche tem também sua vanguarda histórica. Escolheu o chileno Juan Downey, que produziu obras pelas Américas, onde criou uma relação estreita com as comunidades indígenas, deixando em seus trabalhos vestígios de questionamentos sobre os códigos de como os indivíduos são representados. Também foi lembrado Asger Jorn, do grupo CoBrA, que trabalhou um projeto fotográfico dedicado ao simbolismo da escultura e arquitetura em um contexto europeu setentrional. A sala de Edward Krasinski mostra com clareza como ele desloca a natureza do “material” para que suas propriedades obscuras, mágicas, alquímicas, possam emergir e dar margem a uma experiência que transcende nosso habitat.
Todos eles falam de coisas que existem, mas o sistema faz questão de ignorá-los.
Confira a entrevista com o presidente da Fundação Bienal, que foi publicada no encarte Especial 31ª Bienal, distribuído com a edição número 26 da Revista ARTE!Brasileiros. Clique aqui.
Na 27ª edição da ARTE!Brasileiros o curador independente e crítico de arte e arquitetura, Pablo Léon de la Barra fez uma análise sobre a 31ª Bienal de São Paulo. Leia!
Serviço – 31ª Bienal de São Paulo
Pavilhão da Bienal (av. Pedro Álvares Cabral, s/ n, parque Ibirapuera, portão 3)
Grátis
De 6/9 a 7/12
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