Que a Colômbia não vive mais assombrada pela guerra civil e pela violência do narcotráfico, ao menos do modo extremo em que vivia nos anos 1990 e 2000, isso já não é novidade. Que suas cidades, principalmente Bogotá, Medellín e Cáli, reergueram-se com arrojados planos de revitalização urbana, tornaram-se referência internacional e passaram a receber um crescente número de turistas estrangeiros tampouco é surpresa. O que nem todos sabem é que a Colômbia, e especialmente sua capital, Bogotá, se consolida, em ritmo acelerado nos últimos anos, como um dos polos mais efervescentes para as artes plásticas no continente sul-americano, seja no que se refere à produção em si, seja na força de seu mercado consumidor e na atuação de suas instituições públicas e privadas.
Nenhuma época do ano explicita melhor esse fato do que o início do mês de outubro, quando ocorrem ao mesmo tempo na capital cinco feiras de arte – capitaneadas pela ARTBO – e o prêmio de arte contemporânea Luis Caballero, que espalha obras e instalações por toda a cidade, além de diversas exposições em museus e galerias. A ARTE!Brasileiros esteve em Bogotá no período e percorreu boa parte do circuito das artes da capital. Para além dos eventos sazonais, a cidade assiste nos últimos anos ao crescimento no número de publicações especializadas e à transformação de alguns de seus bairros, como San Felipe ou La Macarena, a partir da abertura de ateliês e galerias nacionais e estrangeiras, como a Fabien Castanier Gallery (Los Angeles).
“Tenho vindo a Bogotá nos últimos anos e senti essa energia do lugar. Há uma cena artística crescente aqui, com novas galerias, ótimos artistas, cada vez mais feiras e museus. Bogotá está se convertendo rapidamente em um importante centro comercial na América Latina e continuará crescendo. Para nós, é importante estar aqui”, afirma Castanier, francês radicado nos EUA que acaba de abrir filial de sua galeria na cidade.
A constatação do galerista é muito semelhante à de outro estrangeiro que circulou pela capital no mês de outubro, o novo diretor da Miami Art Basel, Noah Horowitz: “Sinto que há muito vigor aqui neste momento. Colecionadores, artistas, muitas boas galerias. Tendo viajado muito pelo mundo, posso dizer que essa energia de Bogotá é muito genuína, e há um verdadeiro comprometimento das pessoas em fazer as coisas acontecerem”. Artistas, diretores de instituições e curadores colombianos não discordam dessa visão, mas refutam a ideia de surgimento de uma cena artística colombiana. “Acho que podemos eliminar essa palavra, ‘emergência’. As artes plásticas aqui são fortes há muito tempo. O ponto é que agora estão sendo vistas, e não necessariamente porque haja melhores artistas. Certamente existe uma produtividade maior, mas que tem a ver com uma melhor estrutura, com visibilidade, com intercâmbio internacional e a existência de muito mais galerias e curadores. Isso permite que mais gente se dedique à arte, viva de arte”, afirma a diretora da ARTBO, Maria Paz Gaviria.
Mariangela Méndez, curadora do setor Artecámara – uma exposição não comercial dentro da ARTBO, com obras de 33 jovens artistas colombianos –, segue na mesma linha: “Quando você não conhece uma coisa, não significa que ela não exista. E assim foi com a arte colombiana. Não havia a visibilidade nem a estrutura toda, mas a produção existia. Estudei arte aqui 20 anos atrás, e você precisava fazer tudo sozinho: não só a obra, mas inventar sua própria exposição, montá-la, escrever sobre ela e divulgar. Ou seja, existia basicamente artistas e obras, mas nenhuma plataforma para que isso fosse apresentado, vendido, debatido e visto”.
Feiras para todos os gostos
Hoje a arte colombiana não só está sendo vista como o que se vê é muita coisa. A ARTBO, criada em 2005 como parte de um projeto da Câmara do Comércio para posicionar Bogotá no mapa das artes latino-americano e fortalecer a cena nacional, consolidou-se como o mais importante evento de arte contemporânea do país. Entre outros motivos, por focar não só o lado comercial, mas promover em seu pavilhão exposições, debates, intervenções artísticas, lançamentos de livros e espaços de criação. Com 84 galerias de 33 cidades na edição de 2015 (incluindo as brasileiras Luisa Strina, Luciana Brito, Vermelho, Jaqueline Martins, Eduardo Fernandes, Nara Roesler e Sé), a feira cresceu significativamente ao longo dos anos – com apoio governamental e de empresas privadas –, mas com o cuidado de não se descaracterizar. “A ARTBO tem uma oferta bem específica, de um grupo de galerias latino-americanas de altíssimo nível. E isso é bem singular. Como visitante americano, não venho aqui para ver as mesmas galerias que estão em todas as grandes feiras do mundo”, disse Horowitz.
Em um edifício histórico no centro da cidade, a Feira Odeón também se fortalece ano após ano, tendo realizado a terceira edição em 2015. Com a presença de apenas 21 galerias e uma pegada mais alternativa, a feira posiciona os estandes na peculiar arquitetura do prédio de quatro andares. Com uma maioria de galerias colombianas e brasileiras, a Odeón cobra ingressos mais baratos (cerca de R$ 20, aproximadamente metade do preço de entrada da ARTBO) e dialoga mais fortemente com a vida urbana do centro da cidade. A feira que mais explicitamente se entrelaça à agitação de rua bogotana, no entanto, é a Barcú, criada em 2014 e montada dentro de 11 espaços – a maioria casas tombadas – no bairro histórico da Candelária. Menos rigorosa que as outras no que se refere à escolha das galerias participantes, a Barcú tem como maior mérito integrar a arte aos espaços da vida urbana, incentivando os visitantes a caminharem de casa em casa pela região mais pulsante da cidade.
Popularização
Se todas as feiras, cada uma a seu modo, fomentam a popularização das artes plásticas na Colômbia, a Feria del Millón (feira do milhão) é a que coloca com maior ênfase esse objetivo de atingir um público cada vez mais amplo e não necessariamente iniciado nas artes contemporâneas. A proposta é simples: nenhuma obra pode custar mais de 1 milhão de pesos (cerca de US$ 350) e os artistas participam sem mediação de galerias. Desse modo, no primeiro dia do evento, em um pavilhão localizado em um antigo bairro industrial, via-se um grande número de jovens circulando, conversando diretamente com os artistas e formando uma enorme fila para pagar as obras adquiridas, em um caixa que mais parecia o de um bar ou mercado. “A Feria del Millón procura sair um pouco do espaço rígido das galerias, uma coisa mais informal, e com a ideia de que as pessoas não precisam ter muito dinheiro para comprar arte. Eventos como esse também fazem com que as pessoas percam um pouco o medo da arte e rompam essa barreira que existe, que diz que a arte é algo que não posso entender, algo altamente conceitual e que não me diz nada”, comenta o artista Santiago López Carmona, de apenas 25 anos, um dos selecionados para expor na feira.
A discussão sobre a popularização – às vezes lenta – da arte contemporânea na Colômbia se fez presente em debates e conversas nas feiras da cidade. Segundo José Roca, curador com passagem pela Tate de Londres e hoje diretor de um instituto independente em Bogotá, o FLORA ars + natura, o público é crescente, mas ainda muito restrito se comparado ao de outras manifestações artísticas. “A ARTBO recebe 30 mil pessoas, o que é bastante, mas a feira do livro recebe 500 mil, e o Festival de Teatro atinge todos os estamentos da sociedade bogotana. Nesse sentido, ainda podemos dizer que a arte contemporânea se restringe a uma elite intelectual. Para qualquer um, ver uma pintura é ver arte, independentemente se gosta ou não. Mas quando as pessoas veem muitas das outras linguagens usadas na arte contemporânea, não entendem aquilo, pois não está integrado ao imaginário social. Então, quanto mais trabalharmos para apresentar ao público as propostas contemporâneas, seja quais forem, mais elas vão se integrando à mente das pessoas. E aí a questão deixa de ser se aquilo é arte ou não, e passa a ser se aquilo lhes interessa ou não, se lhes toca em algum lugar.”
Um país em transformação
Distante dos dias de guerra civil e domínio violento do narcotráfico e com uma crescente estrutura no universo das artes – no que se refere a financiamento, curadoria, popularização, organização de feiras, criação de espaços expositivos e comerciais –, a Colômbia vê a produção da nova geração expandir suas temáticas, linguagens e linhas de pesquisa. Temas políticos e sociais, predominantes nas últimas décadas, passam a dividir espaço com assuntos do cotidiano, questões tecnológicas ou conteúdos mais abstratos, como a tensão entre celeste e terreno, o olhar para as origens ou para o infinito. “A arte é um reflexo da sociedade que a produz, e o assunto da violência diminuiu. Claro que muitos ainda estão trabalhando esse tema, mas não é mais tão urgente falar disso na arte”, afirma Roca. Na verdade, a arte contemporânea no país, assim como foi a arquitetura para a revitalização urbana das últimas décadas, não só reflete como também fomenta a notável transformação pela qual vem passando a sociedade colombiana. “Até uma década atrás éramos para o mundo sinônimo de Afeganistão, Iraque…”, constata Méndez. E ela conclui: “Agora os olhos se fixaram na arte colombiana de outra maneira. Tudo que forma um contexto para o mundo da arte, que inclui não só artistas, mas a formação de curadores, da crítica, dos espaços de exposição, de galerias e instituições, isso tudo veio se sofisticando e se profissionalizando. E junto a isso a imagem do país se transforma”.
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