Já confirmada na próxima edição do TALKS, que terá a fotografia em foco e acontecerá durante a SP-Arte/Foto, a curadora brasileira Georgia Quintas é doutora em Antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-graduada em História da Arte na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), de São Paulo. Georgia também é autora, entre outros, do livro Tempo Arenoso, com fotografias de Elaine Pessoa, publicado pela Olhavê. Entre as curadorias que levam sua assinatura destacam-se Arqueologia de Ficções (Capibaribe Centro da Imagem, Recife, 2013) e Abismo da Carne (DOC Galeria, São Paulo, 2014). Leia a entrevista da curadora com Simonetta Persichetti.
ARTE!Brasileiros — Como você analisa este momento da fotografia, como protagonista no mundo e especialmente no Brasil?
Georgia Quintas – Tenho sempre muito cuidado ao refletir situações que possuem uma extensão bastante ampla de análise. Irei fazer um caminho no qual possa destacar alguns aspectos. Alinho a essa ideia de protagonismo o fator de fetichização social da própria imagem e ao imediatismo de – mais do que ser “algo” – estar praticando algo no mundo. É uma postura antropológica de se colocar enquanto sujeito para a sociedade dentro de dinâmicas que envolvem status, poder, prestígio e, sobretudo, situações de posse. Sinceramente, tendo a pensar que é muito mais de posse, da aparente e fácil concretude do que se pode ser, do que se troca. O que digo parece ser um paradoxo brutal, pois, se a imagem é publicada, é o seu curso natural comunicar-se com essa ampla rede social de que dispomos. Claro que a comunicação existe, a troca social existe. Mas falo mais especificamente de fenômenos que possuem uma porosidade mais complexa e coloca a imagem que lateja como consumo, consumo da própria imagem. A rede social acolhe essa imagem, envolve em diversos contextos de leitura e inter-relações, mas maneja no escopo desse gesto de fotografar: o espelho, método de ter a fotografia impregnada dessa relação de desejo com o mundo. Nosso tempo deixará de legado uma galáxia de imagens fotográficas e questões filosóficas sobre essas imagens, de uma magnitude cuja proporção não consigo vislumbrar. Considero, enquanto crítica, que é preciso pensar profundamente nesse volume enquanto arquivo, na medida em que isso se tornará memória.
De que maneira você desenvolve pesquisas de criação com fotógrafos brasileiros?
Antes de qualquer atividade que desenvolvo com fotografia, como curadora e editora de livro, costumo dizer que sou professora, pesquisadora e escritora. Não tem uma essência cabotina nessa minha afirmação, é uma questão prática mesmo de explicar como me relaciono com trabalhos fotográficos e, claro, com os artistas. Interesso-me pelo diálogo sobre o processo, em como as imagens surgem e passam a existir por um discurso poético. Acredito que acompanhar projetos é entender o método de quem cria, e provocá-lo com leituras e referências teóricas pelas quais surgem os conceitos de um projeto. É a partir desse olhar crítico, de mergulho nas redes de criação, que me identifico como pesquisadora.
Já podemos falar de um mercado para a fotografia brasileira?
Sim, absolutamente. Fazem parte desse mercado colecionadores, aficionados e investidores que reconhecem a relevância da linguagem fotográfica. Percebo que assim como há um interesse, digamos natural, pela produção contemporânea, há também o nicho que se dedica aos acervos de fotógrafos renomados. Isso também se expande para obras mais antigas, ligadas à importância da história da fotografia. Contudo, vale considerar que a fotografia quando provocativa, dentro e fora da sua zona de conforto, passa a transitar verdadeiramente por sua potência de visualidade, de narrativa e, por conseguinte, de aprofundamento poético e artístico. Não falo enquanto estética, e sim sobre o amadurecimento de trabalhos para o mercado. O artista, quando estabelece um projeto maior, estimula o colecionador, o comprador, a entender aquela série por meio de conceitos que alinhavam sua produção de modo mais firme, mais contundente. Há artistas que, apoiados ou não por suas galerias, pensam seus trabalhos por meio de projeto, processo, encaminhamento de pesquisa. Embora as imagens sejam vendidas em sua maioria isoladamente, elas não perdem em sua essência o fluxo do projeto pelo qual o artista desenvolve suas ideias.
Quais as tendências da fotografia no futuro?
Há uma forte conexão contemporânea com os trabalhos que envolvem a memória, seja a partir de fotografias antigas ou da construção poética dessa abordagem, as relações afetivas, familiares, a nostalgia por lugares, espaços das mais diversas referências geográficas ou físicas. Olhares sobre microuniversos. Percebo ainda que o tempo e, sobretudo, o território de atuação dessa temporalidade permeiam as questões contemporâneas de forma bastante volumosa em sua quantidade, mas também em sua eloquência. Contudo, esse é um dos recortes que vejo com mais recorrência, e há outros elementos de discussão que adentrariam no processo, em como os trabalhos, as pesquisas, os ensaios se encaminham para várias atitudes, pensamentos e formas em diálogo com outras linguagens. Há críticos que já abordaram esse tema da pós-fotografia. Vejo particularmente que o futuro adensará as histórias, as narrativas, as micronarrativas. Pensar o que se faz é sempre um caminho autêntico de se fazer arte. A fotografia é processo. E não há processo sem vivência, experiência, erros, acertos, angústias e possíveis resoluções a serem expostas. Talvez, produziremos menos imagens e nos voltaremos para as já existentes, retrabalhando e refletindo sobre novos significados para elas.
Como você vê a fotografia brasileira em relação à produção mundial?
Profícua e com uma produção relevante em diversos segmentos de pesquisa contemporânea. Muitos talentos, olhares de artistas em processo de amadurecimento e jovens promissores artistas. Mas, no fundo, acredito que ainda estamos muito afeitos e aderidos ao bidimensional da imagem. Muito pela tradição da própria fotografia. Não setorizo ou contextualizo grupos de produção. Faço aqui uma reflexão aberta. Fico pensando e me encanto quando vejo esse território visual compartilhar com outras linguagens, ou seja, com outra possibilidade de execução. A fotografia já deu conta, enquanto estatuto ontológico, de transcender a si própria, ao reinventar-se a partir de si. Esse é um exercício que a arte exige de mover-se sempre diante do mundo e de inquietar-se sobre o pensamento. Tivemos na História da Arte esse momento fundamental de experimentar, literalmente, o mundo pela arte. Desprender-se do real e envolver-se com a experiência mais profunda com a imagem que produzimos e por que produzimos me parece um dos caminhos mais interessantes para se trazer questões significativas. Quando falo aqui de sair do bidimensional, não é apenas mudar de suporte, mas perceber como a linguagem pode se contaminar por outras formas, materiais, texturas, assim como pode e deve ficcionalizar-se ainda mais. A fotografia brasileira tem diversos artistas, sejam de gerações mais antigas ou novas, que estão atentos a essas questões de rompimento, de envolvimento, refletindo também como ocupamos esses espaços de produção de sentido.
E a fotografia de celular que sai da tela e vai para parede?
Não vejo problema. Com a qualidade técnica dos telefones móveis e a praticidade de tê-los sempre em mãos, muitos profissionais, cada vez mais frequentemente, estão produzindo com eles. Em minha análise, estou seguindo o raciocínio de que, desde sempre, a habilidade e a sensibilidade do olhar são fundamentais para provocar o olhar do outro. As câmeras, pelos seus recursos técnicos e seus avanços tecnológicos, deram e dão a base para a qualidade técnica da imagem, mas não é a premissa para se ter um olhar poético e que problematize o mundo. Desse modo, voltamos para o propósito de quem faz e como faz sua ideia acontecer, por meio de um aparato ou ferramenta, a fotografia acontecer.
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