Calçada da fama de Regina Silveira no centro de São Paulo

A obra de Regina Silveira ganha espaço na cidade que a acolheu e a impulsionou. Foto: Luiza Sigulem
A obra de Regina Silveira ganha espaço na cidade que a acolheu e a impulsionou. Foto: Luiza Sigulem


Nos amplos espaços da nova sede do Museu de Arte Contemporânea – MAC, da Universidade de São Paulo, um som estridente, como de uma manivela enferrujada, incomoda constantemente os seguranças da instituição quase sempre deserta.

É o som da instalação Una vez Más (2012), de Regina Silveira, que não só agride os ouvidos de quem está por perto, como provoca o espectador que se aproxima com um dos gestos obscenos mais populares: mostrar o dedo do meio, mesmo que em uma animação gráfica.

O que não é explícito é que esse dedo foi moldado a partir da mão da própria artista, uma estratégia que, há mais de 30 anos, acompanha sua carreira.

“Essa obra tem a ver com a série A Arte de Desenhar, e eu me surpreendi com o fato de o Tadeu Chiarelli escolher esse trabalho para o museu”, conta Silveira, de 75 anos.

Una vez Más é uma das obras da exposição O Artista como Autor/O Artista como Editor, organizada por Chiarelli e que está em cartaz no MAC até o fim do ano.

Na série A Arte de Desenhar, Silveira mesclava exercícios para aprender a desenhar com gestos obscenos. “Eu acho que a origem de utilizar esses gestos está na minha formação e na minha geração, que precisava saber desenhar e saber pintar, mas queria romper com isso”, conta a artista em seu amplo ateliê no bairro do Sumaré, em São Paulo.

Há ainda outro componente biográfico nessa poética, segundo Silveira: “Tem a ver com a batalha em ser artista-mulher, mesmo que aqui haja mais abertura nesse campo”.

O que soa um tanto irônico é que quando há uma mão representada em suas obras, é a sua própria mão, apesar da geração de Silveira ter sido pioneira em questionar a noção de autoria na arte, abandonando, por exemplo, a assinatura das obras, assim como negando a necessidade de o artista ser o realizador do trabalho, podendo terceirizar a execução de suas ideias.

Com isso, ao inscrever seu próprio corpo nos trabalhos, Silveira transfere a eles um conteúdo performático: mesmo virtual, no caso de Una vez Más, é a sua mão que mostra o dedo ao espectador. Ela confirma esse caráter comparando o som estridente da projeção com sua condição atual. “É tão incômodo como eu, uma velha sem paciência, diz, sorrindo com o próprio sarcasmo.

A tática de exibir algo na obra sem de fato usar uma representação realista é constante em sua carreira. Outro exemplo um tanto óbvio é o uso das sombras, já presente nas séries A Arte de Desenhar ou Enigma, também dos anos 1980. Um conjunto dessa série foi recentemente adquirido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York e será exposta no Grand Palais, na mostra MoMA/Paris Photo. “Um deles é o símbolo da exposição”, orgulha-se. Nessa série, ela cria misturas um tanto bizarras, como a sombra de um garfo sobre um telefone ou de um martelo sobre uma máquina de escrever.

“Tudo se junta no índice. Posso entender todo meu trabalho a partir dele, e a sombra é a metáfora da arte”, diz Silveira, referindo-se a um conceito da Semiótica, segundo o qual o índice é sempre uma referência, como a sombra do martelo que lembra o objeto que cria esse espectro.

Termos assim complexos soam naturais em sua fala, pela experiência como professora, por mais de 40 anos, em Porto Alegre, sua terra natal, Porto Rico e São Paulo. Aqui, ela lecionou na FAAP e na própria USP, onde se aposentou em 1993, mas só deixou de dar aulas de fato em 2000. “Foi quando a Ana Tavares terminou o doutorado e achei que com isso eu podia realmente parar”, recorda-se.

Disposta de forma permanente, a Estação Pinacoteca exibe uma dessas obras com índices na área dedicada à gravura. Trata-se de Irruption, com marcas de pés que recobrem toda uma passagem do museu, um trabalho que carrega outros dois elementos fundamentais em sua obra: a ocupação de espaços públicos e a escala agigantada.

Coincidentemente, ambos têm origem em uma encomenda do Museu de Arte Contemporânea de São Diego (EUA), em 1996. Para a inauguração do espaço, Silveira foi convidada para ocupar a fachada da instituição e recobriu toda a área com pegadas de coiote, em uma referência aos imigrantes ilegais que atravessam a fronteira do México para os Estados Unidos.

Por conta desse trabalho, ela foi convidada por Paulo Herkenhoff para participar da 24a Bienal de São Paulo, em 1998, quando realizou Tropel, ocupando a fachada do pavilhão no Ibirapuera com imensas pegadas de animais. “Hoje em dia, o que eu mais gosto é dessa experiência de me relacionar com pessoas que estão fora do circuito convencional da arte”, conta Silveira.

Nesse sentido, agora no final do ano, ela vai inaugurar sua maior obra com caráter público permanente, que será o revestimento dos mil metros quadrados da calçada em torno da Biblioteca Municipal de São Paulo, no Centro da cidade.

Para tanto, serão utilizadas peças de porcelanato – 1,5 milhão –, em que a palavra “biblioteca” será escrita em várias línguas. “Esse é um projeto antigo, que ganhou uma concorrência para a Biblioteca de Nova York, em 2002, mas acabou não sendo realizado. Quando o Carlos Augusto Calil soube disso, em sua gestão como secretário de Cultura de São Paulo, ele me convidou para realizar o projeto aqui”, conta. Em meio à obra, surge às vezes o desenho de um alfinete, como se as palavras estivessem sendo costuradas, novamente uma referência ao caráter performativo em sua obra. “É bom porque também é para pisar em cima”, diz ainda a artista com certa ironia.

Pisar na obra, afinal, é um pouco como incorporar o gesto obsceno ou como se lembrar de imigrantes ilegais: revela uma faceta contestadora, tão rara na arte brasileira embalada pelas feiras na cena contemporânea.

A própria ideia de sombras é uma estratégia que vai contra o cânone solar da arte brasileira, que utiliza cores fortes e vibrantes. Na obra de Silveira, predominam o preto e o branco. Dessa forma, ela se filia à poética soturna de artistas como o gravurista Oswaldo Goeldi (1895-1961) ou o pintor Iberê Camargo (1914-1994), de quem foi aluna e amiga. “A diferença é que o trabalho do Iberê era existencial, enquanto o meu é mais político”, conclui. Mostrar o dedo, afinal, talvez seja o gesto mais radical e necessário no atual cenário.


Comentários

Uma resposta para “Calçada da fama de Regina Silveira no centro de São Paulo”

  1. Tive o privilégio de ter sido sua aluna e suas obras sempre dialogaram com o público poeticamente ou de uma forma contestadora. Que privilégio para nós paulistanos,uma obra so para nósem frente a uma biblioteca,a morada da palavra escrita,em dialogo permanente,com a palavra viva e em movimento,os corpos dos transeuntes.

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