Canteiro de obras

Em setembro, uma tela tênue cobria uma fileira de vagões de trem que se estendia por 1.200 m, entre as antigas estações da Mooca e do Ipiranga, em São Paulo. Clara, diáfana e esvoaçante. Era daquele material usado para vestir prédios em construção, a fim de evitar que alguma coisa caísse na nossa cabeça. É comum ser visto na vertical, agora que as grandes cidades experimentam um boom imobiliário. Mas estendido na horizontal, junto à desolação de galpões abandonados e outros vestígios da Era de Ouro da Ferrovia! Isso deve ter intrigado quem passou rente, a bordo de um dos trens de passageiros do ramal ainda em funcionamento.

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Ao mesmo tempo, não muito longe dali, uma movimentação estranha acontecia envolvendo contêineres de aço do tamanho de vagões de carga. Na esplanada do Memorial da América Latina, um gigantesco guindaste dispunha cinco contêineres de 12 m de comprimento cada um em posições diferentes, como um lego em mãos infantis. Era um experimento de montagem contínua envolvendo grandes volumes, um laboratório a céu aberto de equilíbrio, peso e contrapeso. Quem se dirigia à Estação Barra Funda de metrô, ônibus e trem também deve ter ficado intrigado.

Afinal, por que estavam cobrindo com tela de construção civil 60 vagões de trem de carga há mais de dez anos abandonados na Mooca e “brincando” com contêineres de carga na Barra Funda? O que isso estava querendo dizer para a cidade? Quanto mais essas perguntas eram feitas pelos passageiros – no mês de setembro em Sampa –, mais o projeto Canteiro de Obras alcançava seu objetivo. Concebida pelo artista plástico José Resende, o filósofo Nelson Brissac e a engenheira Heloísa Maringoni, a iniciativa queria exatamente colocar pontos de interrogação na cabeça das pessoas, fazer com que elas pensassem sobre uma realidade histórica que se naturalizou na modernidade brasileira. Afinal, refletissem o porquê, nas famosas palavras do etnólogo francês Claude Levi-Strauss no livro Tristes Trópicos: “As cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude sem se deterem no antigo”.

Tudo começou com um edital da prefeitura de 2010, Arte na Cidade, para obras públicas, que atendia a uma demanda urgente, pois, segundo Teixeira Coelho, um dos curadores do concurso: “O belo, o intrigante, o curioso, o atrevido são dimensões da vida urbana que, em uma cidade como São Paulo, foram esquecidas ou raramente cultivadas”. Ora, o filósofo Nelson Brissac Peixoto trabalha com esse tema desde 1994, quando criou o Arte/Cidade, projeto guarda-chuva que “busca destacar áreas críticas da cidade diretamente relacionadas com processos de reestruturação e projetos de redesenvolvimento, visando identificar seus agentes e linhas de força e ativar sua dinâmica e diversidade”. Ao longo do trajeto, podia-se parar e visitar algumas intervenções artísticas naqueles “cenários em ruínas”, aliás, título de um de seus livros, da década de 1980. Em 2002, Nelson Brissac convidou José Resende para uma intervenção na Zona Leste que ganhou grande repercussão na época e foi apontada recentemente (programa Roda Viva, da Rede Cultura, de 1o de outubro de 2012) pelo artista Nuno Ramos como sendo a única obra pública que não foi consumida pela cidade: simplesmente, José Resende ergueu três pares de vagões, com cabos, também usando guindastes.

A ação tem a ver com o que o crítico Ronaldo Brito chama, na obra recente de Resende, de “embates cegos com materiais notoriamente refratários a qualquer formalização regular, explorando atritos, aversões e impregnações exclusivamente materiais e, por serem esses materiais em geral comuns, pesados e industriais, favorecendo livres associações com processos de construção”.

Nelson Brissac convidou, então, José Resende para novamente atuarem juntos. José Resende que, desde 1979, tem uma placa negra de concreto do tamanho de um outdoor instalada em frente ao Palácio da Justiça, na Praça da Sé, âmago de São Paulo. E lá foram os dois visitar o ramal Mooca. “Aí, eu disse ao Brissac: ‘Puxa, vagão eu já ergui, não sei o que faço com essas coisas!’. Mas comecei imediatamente a pensar o que seria essa solicitação da prefeitura em atuar na cidade. Veio a ideia de apresentar algo paradoxal, contra a expectativa de colocar alguma coisa na cidade. Por que não pensar aquilo que tínhamos diante de nós – o caminho de ferro, com vagões e galpões abandonados – como algo já visualmente marcante dentro da cidade, embora em um processo de indiferença?

Quando a dupla soube que aqueles vagões abandonados se espalhavam aos milhares pelo País, só em São Paulo somando 40 mil, e que eles seriam derretidos pela Gerdau, imaginou que era possível fazer alguma intervenção enquanto eles estivessem sendo retirados. “Para nós, seria uma espécie de local de experiência, por isso o nome Canteiro de Operações, porque seria um campo experimental de transformar aquela visualidade até a sua retirada.”

“É importante a arte puxar essas questões”, comenta Brissac, “e apontar uma discussão a ser feita, buscando tirá-la do senso comum ao ampliar o repertório de questões a serem pensadas, onde se associam as possibilidades que as técnicas podem abrir de transformação, remoção ou sucateamento, às implicações urbanísticas de ocupação.”

ENQUANTO ISSO NO REINO DA DINAMARCA…
Por Christine Buhl Andersen*

“Para difundir essa visão de que Podemos influenciar as políticas e a maneira como pensamos a arte em espaços públicos, é fundamental produzirmos conhecimento sobre o tema. Por esse motivo, apoiamos pesquisas, utilizando diferentes métodos e estratégias para usar a arte como um mecanismo de desenvolvimento das cidades.”

“Lidar com a arte pública é um desafio de grande responsabilidade para os museus, uma vez que a maioria das obras não pode ser colecionada da maneira tradicional e, às vezes, está exposta a más condições de conservação e requer manutenção e processos de restauro. Ao mesmo tempo, os espaços públicos são importantes campos de trabalho para a produção artística, pois o contato direto entre as obras e o público é uma potente ferramenta de democratização do debate sobre as cidades e suas instituições. A arte pública envolve a voz poética e a crítica da arte, mas também agrega iniciativas políticas e interesses econômicos que podem ser aplicados ao desenvolvimento das cidades.”

“Outro projeto importante que fizemos foi o Our Art, uma vistoria nacional, onde convidamos sociólogos e antropólogos para viajar pelo país e consultar pessoas de 15 lugares diferentes para conhecer suas percepções sobre obras públicas permanentes, doadas por fundações e museus da Dinamarca, ao longo dos últimos 45 anos. Foi muito interessante testemunhar a reação das pessoas, pois, muitas vezes, elas gostam de coisas que você jamais iria imaginar que gostariam. Uma ruptura que também ajuda a mudar as políticas das fundações dinamarquesas de arte. As pessoas se envolvem intensamente e é muito gratificante quando você pode estabelecer esse diálogo com as ‘autoridades’ que realmente têm o poder de influenciar outros a compartilharem esses espaços públicos. Tentamos traduzir isso em conhecimento para as nossas exposições e também quando somos consultados por cidades que querem trabalhar com a arte pública de uma forma estratégica.”

*Christine buhl Andersen é diretora do Køs Museum Of Art in Public Spaces da Dinamarca


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