Como abordar o real

Cada vez que um sem-teto dá entrada em três dos abrigos existentes para os sem-teto em Montreal, no Canadá, uma luz vermelha com potencia de 100 mil watts se acende na cúpula de um dos edifícios-monumento da cidade, o Marché Bonsecours.

Com isso, esses habitantes praticamente invisíveis da cidade ganham uma exposição inédita, mesmo que através de uma materialidade etérea, o que foi a intenção do artista chileno Alfredo Jaar, com Lights in the City.

Produzida em 1999, a instalação revela muito de uma das temáticas centrais na obra de Jaar: o uso ético da imagem. Com a luz, o artista não explora a imagem desses habitantes marginalizados da vida urbana, apenas aponta sua existência de forma discreta, mas efetiva. Cada vez que o vermelho aparece, parte da crise da condição humana da metrópole se revela. “Trata-se de algo que é claramente inaceitável dentro do contexto de uma das mais ricas cidades da América do Norte”, disse o artista quando apresentou esse trabalho em sua conferência no Simpósio Internacional que ocorreu no dia seguinte da abertura da 4ª Trienal Poli/Gráfica de San Juan, em outubro do ano passado, no imponente teatro da Universidade de Porto Rico.

Durante cerca de meia hora, Jaar magnetizou o público apresentando sua obra a partir de questões candentes naquele momento, especialmente o uso pela mídia da fotografia do menino refugiado sírio Alan Kurdi, morto em uma praia turca, em setembro do ano passado, estampada na capa da maioria dos jornais do mundo todo. O artista apontou como a foto publicada chegou a alterar parte do debate sobre os refugiados na Europa, indicando que uma imagem é capaz de mobilizar a opinião pública de forma determinante. Exemplos históricos, como a foto do jovem chinês à frente do tanque de guerra na praça da Paz Celestial, em 5 de junho de 1989, foram ainda citados para reforçar sua tese.

A questão moral envolvida com as mortes de migrantes, aliás, esteve recentemente presente em outra obra de Jaar, na verdade uma intervenção realizada pelo artista durante a feira Art Basel, com o projeto The Gift (O presente). Caixas de papelão azul foram distribuídas durante a feira. Quando abertas, poderiam ser remontadas como obra de arte, mas o presente solicitava uma contrapartida: uma doação à ONG MOAS (Estação de Ajuda aos Migrantes em Rota Marinha), que já resgatou mais de 12 mil vidas em rotas de migração por mar.

Em setembro, Jaar irá realizar sua performance na abertura do Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, certamente tocando em outra questão candente no momento. “Toda conferência que eu dou depende do público e de seu contexto específico, então vou preparar minha fala para o Brasil pensando nesse momento”, diz por e-mail.

O País não é, afinal, um desconhecido para Jaar. Já em 1985, ele passou algumas semanas em Serra Pelada retratando alguns dos 80 mil mineiros que lá trabalhavam, criando com esse material a série Gold in the Morning (Ouro pela manhã). “Creio que foi esse trabalho que me projetou internacionalmente”, disse Jaar à ARTE!Brasileiros, em outubro passado, em Porto Rico. Em 1986, o artista apresentou as imagens de Gold in the Morning na estação de metrô Spring Street, em Nova York, justapondo as fotos dos mineradores com o valor do ouro através do mundo. No mesmo ano, a série chegou a ser exposta na Bienal de Veneza. Somente no ano passado, a galeria Luisa Strina exibiu a série por aqui.

Em suas conferências, contudo, longe de narrar de forma didática sua obra ou as questões que envolvem o uso da imagem, Jaar aproveita sua formação multidisciplinar para realizar de fato uma performance.  “Eu estudei teatro antes de estudar produção de cinema e já fui mágico por vários anos. Então suponho que esse background explique o que eu faço em minhas conferências”. É imperdível.


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