A confluência entre ética e estética na obra de Haroon Gunn-Salie

Vista da exposição "Agridoce", de Haroon Gunn-Salie. Foto: Renata D’almeida
Vista da exposição “Agridoce”, de Haroon Gunn-Salie. Foto: Renata D’almeida

“O dia em que Paracatu acabou e se transformou em um deserto de lama.” É assim que Aparecida Marcelino, moradora do distrito de Paracatu de Baixo, um dos mais afetados pelo desastre ambiental que despejou milhões de litros de lama tóxica no rio Doce, se refere ao dia 5 de novembro passado. Dona da casa – ou do que restou dela, que constitui a instalação central (imagem da página anterior) da exposição Agridoce, do artista Haroon Gunn-Salie –, Aparecida falou com a ARTE!Brasileiros por telefone. Na simplicidade de sua narrativa oral, o que se revela é o roteiro espetacular em que o cotidiano simples de uma cidade pequena é interrompido pelo barulho de um helicóptero seguido de ordens de evacuação aos gritos de “corram para o ponto mais alto que conseguirem ou vai morrer todo mundo”. No escuro do alto da colina a que chegaram somente no começo da noite, depois de 30 minutos de corrida, cerca de 500 moradores apenas ouviram “o barulho do mundo desabando, um som líquido que a tudo engolia”. Depois disso veio o silêncio profundo de uma terra devastada.

Ainda que a modernidade há muito seja descrita em termos de sua liquidez, a vida em pequenas comunidades do interior do Brasil ainda costuma estar inexoravelmente ligada à solidez da terra, por isso as vítimas de Mariana descrevem a tragédia como um “perder o chão” – um chão literal e metafórico a partir do qual (re)produziam sua vida material e identidades individuais e coletivas. Aparecida conta que sua mãe, Leontina, com quase 80 anos de idade, esteve sempre fincada àquela terra – viveu, cresceu, casou-se, criou os filhos e envelheceu em Paracatu, sem jamais afastar-se da região antes daquele dia em que teve que “sair corrida, fugindo da lama, de pés no chão”. Presos num momento eterno que os deslocou de seu lugar no mundo, interrompendo o fluxo natural de suas histórias, essa gente simples agora aguarda por uma nova terra prometida, um “lugarzinho para refundar Paracatu”, como afirma  Aparecida.

fotografias do desastre que integram a exposição AGRIDOCe
Fotografia do desastre que integra a exposição “Agridoce”

Enquanto aguardava esse futuro ainda incerto, ela recebeu, ainda no final de 2015, a visita do sul-africano Haroon Gunn-Salie. O artista havia acabado de retornar à África do Sul – depois de uma viagem ao Brasil em que esteve em Minas Gerais pela primeira vez – quando recebeu a notícia do rompimento da barragem da mineradora Samarco. Gunn-Salie decidiu voltar imediatamente e fazer deste o tema da exposição comissionada pelo 1º Prêmio SP-Arte/Videobrasil para o qual havia sido selecionado pouco antes. Deslocamento forçado, desterramento, trauma, narrativa oral e história são os temas recorrentes na obra do jovem artista que despontou no cenário artístico internacional com seu trabalho de graduação em 2012. Intitulado Witness (Testemunha), a instalação site-specific relatava e atualizava a história dos antigos residentes do District Six em Cape Town, removidos à força durante o apartheid. Este primeiro corpo de trabalho é profundamente autobiográfico: Gunn-Salie chegou a ser preso, quando ainda era um recém-nascido, junto com a mãe, ativista política antiapartheid, falsamente acusada de um atentado. Esses primeiros anos de sua vida, passados na clandestinidade da resistência política, foram a ele recontados pelos pais. A partir dessa experiência de uma memória construída por narrativas orais e subjetivas, ele adotou a noção de observador participativo, que passou a informar sua arte. Graduado em Escultura, Gunn-Salie adotou a prática colaborativa como uma metodologia na qual a obra de arte é concebida e executada a partir do diálogo intenso e da ação coletiva da comunidade ,  uma tendência que a crítica britânica  Claire  Bishop denominou virada social (social turn).

Na abertura da exposição, moradores de mariana reencenam a manifestação folclórica “Folia de Reis” pela primeira vez após o desastre. Fotos: Renata D'almeida
Na abertura da exposição, moradores de Mariana reencenam a manifestação folclórica “Folia de Reis” pela primeira vez após o desastre. Foto: Renata D’almeida

Imerso no cenário pós-apocalíptico de uma Mariana desolada, o artista conta que não tinha um projeto pré-concebido, apenas uma pergunta que orientava sua pesquisa: “O que aqui precisa ser dito e visto?”.  Desenvolvido em parceria com moradores locais, em especial com três famílias que se recusam a deixar suas terras, a exposição Agridoce é resultado de um processo que pode ser chamado community-specific – uma variação do termo site-specific, em que a noção de site (lugar físico) é substituída por uma noção imaterial de comunidade – entendido como grupo de pessoas que partilha de uma noção identitária que pode ter por base etnia, gênero, filiação política ou mesmo a proximidade geográfica e cultural, como no caso dos moradores de Paracatu. Assim, a exposição começou a tomar forma a partir de colaborações como a de Aparecida, que, apesar de jamais ter entrado em um museu ou galeria de arte, doou as ruínas de sua casa para o projeto, por acreditar na importância de mostrar ao mundo o que ali havia se passado.  Além dos escombros, seis toneladas de lama foram trazidas de Mariana para compor a exibição. Em torno dessa instalação-ruína orbitam ainda outras obras em diferentes suportes – fotografia, vídeo e som –, que compõem um microcosmos da tragédia e convidam o público a confrontar uma realidade que de outra forma só lhes seria acessível através das narrativas fabricadas pela grande mídia.

Em um dos lados do campo expositivo passa-se por uma sequência de fotografias do desastre, disposta logo antes dos escombros da casa de Aparecida, em cujo entorno foi desenhado com lama um pequeno percurso. Essa configuração especial denota a passagem da representação pictórica do desastre para sua apresentação direta no espaço da galeria – em vez de apenas observar a lama através de imagens, o público é convidado a caminhar em meio a ela. Essa passagem da imagem da ruína para a ruína em si marca também uma mudança de posicionamento do espectador, uma performatividade induzida pela disposição formal dos elementos no espaço, que o leva a entrar em experiência relacional, não somente com a obra ali presente, mas também com o contexto da qual ela foi deslocada. Gunn-Salie explica que sua intenção é fazer um convite para que o público se coloque no lugar do outro ali simbolizado. Ao percorrer o pequeno entorno dos escombros, a presença de vestígios e detalhes que se deixam entrever na lama – como um retrato em que não se pode identificar mais ninguém – revelam mais a ausência deste outro e o silêncio angustiante de suas vidas soterradas. Na saída da instalação, do outro lado do galpão, um vídeo registra o processo de deslocamento dos destroços da casa de Aparecida, e sua reconstrução em São Paulo, deixando evidente o paralelo entre o desenraizamento forçado dos moradores de Paracatu e o desenraizamento das ruínas do imóvel. O vídeo também registra o esforço coletivo de mais de 30 trabalhadores, principalmente pedreiros e mestres de obra envolvidos na ação, revelando parte do processo colaborativo do artista, que consiste em identificar as habilidades de profissionais locais, investindo os recursos orçamentários do projeto na geração de empregos e renda para as comunidades que ele deseja empoderar.  

José Pascoal, morador da cidade Sé Pascoal, morador da cidade da cidade de Mariana, mostra a destruição do seu bairro. Fotos: Renata D'almeida
José Pascoal, morador da cidade Sé Pascoal, morador da cidade de Mariana, mostra a destruição do seu bairro. Fotos: Renata D’almeida

Foi também no chão de seu campo de pesquisa que Gunn-Salie percebeu que o que havia ficado fortemente inscrito na memória sensível da comunidade era o barulho líquido da lama correndo solta – no discurso das vítimas, a produção constante de onomatopeias que tentam enunciar aquele momento indizível. Como é comum em todo trauma, faltam ali também palavras para descrevê-lo. Daí a criação da instalação sonora presente na mostra, numa tentativa de dar conta daquilo que não se consegue articular discursivamente. Contrapondo-se a esse ruído, paira estático e mudo em outro canto do campo expositivo um instrumento de percussão cuja presença indica música e festividade – um tipo de barulho diferente daquele que dizimou Paracatu de Baixo. A festa a que o objeto alude simbolicamente é a Folia de Reis, manifestação folclórica em homenagem aos Três Reis Magos da mitologia católica, tradicional na região mineira. Algo na presença ainda que silenciosa dos instrumentos musicais deixava adivinhar que a festa recomeçaria – que sua potencialidade virtual seria eventualmente atualizada. E, talvez como o prelúdio de novos tempos, a Folia de Reis foi reencenada pela primeira vez depois da tragédia por um grupo de moradores/coautores durante a abertura da exposição, naquela que foi para muitos deles sua primeira experiência com a arte contemporânea.

Detalhe das ruínas da casa de Aparecida Marcelino que compõe a instalação principal da exposição "Agridoce". Foto: Renata D'Almeida
Detalhe das ruínas da casa de Aparecida Marcelino que compõe a instalação principal da exposição “Agridoce”. Foto: Renata D’Almeida

O que a prática artística de Gunn-Salie expressa é, portanto, um contínuo exercício de abertura para “o outro” – abertura da arte contemporânea para o homem “comum” e deste para ela. O envolvimento comunitário materializa de um lado memória e ação coletiva, para desmaterializar de outro a figura do autor individual. Nesse processo desaparecem a um só tempo a figura romântica do artista como um gênio solitário e também a do artista-antropólogo que sai a campo para mostrar outras culturas – na contramão dessa atitude é que Gunn-Salie pretende ensinar os moradores locais de Mariana a documentar suas próprias histórias. Ele é enfático ao afirmar que não lhe interessa usar a arte como comentário da vida, e sim como ação para invenção de novas formas de sociabilidade e subjetivação coletiva baseadas em uma economia afetiva. O que interessa  é um fazer e um fazer junto – arte como ativismo e ação para transformação social. Diferentemente de outros artistas e coletivos contemporâneos trabalhando com práticas baseadas na comunidade, o trabalho do sul-africano não sugere, entretanto, uma negação da estética em favor da ética, e sim uma confluência entre esses campos. Ainda que o significado de sua arte se encontre principalmente nas relações humanas forjadas durante o processo, há ainda no trabalho de Gunn-Salie a preocupação com questões formais. Esta tensão entre estética e ética, entre a arte como arte e a arte que se dissolve em outras formas de vida, é precisamente o que o filósofo Jacques Rancière define como a relação entre autonomia e heteronomia artística – que, embora opostas, não podem ser pensadas separadamente e coexistem em permanente tensão. Numa espécie de prólogo de uma experiência sensível não mais divorciada da reprodução da vida material, práticas colaborativas como a de Gunn-Salie podem oferecer estratégias para fazer da contingência, do risco e da incerteza novas possibilidades de futuro. Ali onde a lama e as ruínas da política, da ecologia e do capitalismo se entrecruzam, confirmando que chegamos de fato ao antropoceno, quem sabe possa a arte oferecer a esperança de um devir fundado em outras formas de existência coletiva.

Serviço – Agridoce
Até 11 de junho
Galpão VideoBrasil
Av. Imperatriz Leopoldina, 1.150, São Paulo
11 3645-0516


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