A 12ª edição da Bienal de Lyon foi movida pela experimentação ao colocar a narrativa no cerne da arte contemporânea. O curador Gunnar B. Kvaran, islandês, acredita que o mundo é feito de contos e narrá-los é algo muito atual e próximo da internet. Para transformar as estruturas narrativas em poéticas visuais, ele apostou em 76 artistas vindos de 18 países e fez da Bienal um laboratório de criação, imerso em histórias sobre a exploração humana, conflitos sociais, culturais e episódios pessoais. Cada artista escreveu seu texto no catálogo, com arquivo e citação, transformando-o em uma espécie de literatura expandida coletiva. Gunnar não investiu só em grandes nomes, preferiu observar os jovens, especialmente os nascidos entre 1975 e 1988, antenados a outras linguagens menos convencionais, desenvolvidas em alguns lugares perdidos no globo terrestre. Ele trabalhou especialmente com artistas da América do Sul, oeste dos Estados Unidos, Ásia e centro da África.
“Nosso trabalho foca a grandeza humana do projeto, os artistas, e não o valor de suas obras no mercado, questões que os museus e nem mesmo as feiras colocam”, comenta Thierry Raspail, diretor do Museu de Arte Contemporânea de Lyon, que organiza a Bienal desde 1991. “Nossa exposição é experimental, assim como a Bienal do Mercosul, de Porto Alegre. Com esse espírito, fiz a curadoria das três primeiras edições e depois convidei, entre outros curadores, Harald Szeemann, Jean Martin, Catherine David e agora Gunnar.”
A Bienal se espalha pela cidade e chega às margens do rio Saône, ocupando a antiga usina de açúcar Sucrière, vanguarda operária da década de 1940, ao Museu de Arte Contemporânea, à Igreja Saint-Just, à Fundação Bullukian e à Chaufferie, além de invadir as ruas com performances e casas particulares, onde alguns moradores vão conviver por 40 dias com uma peça de arte e depois contar a experiência de compartilhar seu espaço com uma obra famosa.
Conceitualmente, Gunnar apoia sua bienal sobre três pontos de um triângulo: o literário com Alain Robbe-Grillet, e seu filme Eden, com o qual faz o anagrama N e ed, em que as mesmas imagens filmadas recebem dois textos diferentes; o performático com YoKo Ono, e duas obras que repousam sobre uma forma de interação ritualizada com o público; e o gráfico-pictórico com Errò, cartunista e pintor islandês que interpretou a Guerra no Camboja, a partir de histórias narradas por sobreviventes.
O Brasil, que foi premiado, “tropicalizou” o cinzento edifício do La Sucrière com o trabalho de Paulo Nimer Pjota, que já deixou sua marca na fachada pintando-a com uma iconografia paulistana, com tatuagens, signos, histórias fragmentadas recolhidas na rua. Dentro do edifício, Jonathas de Andrade, de Pernambuco, que levou o único prêmio conferido pela Bienal, o de Autoria, decodificou o ciclo da produção do Nêgo Bom (grafado assim mesmo), bala de banana vendida no Recife desde o tempo da escravidão. Em uma parede de mais de 10 m, textos curtos criados a partir de uma documentação quase antropológica, o artista desenvolve uma estrutura narrativa muito próxima à arte conceitual. A produção dessa bala é fragmentada em fotografias, cada uma acompanhada de recibos, de testemunhos de trabalhadores da usina onde o artista fez as entrevistas. Trata-se de uma obra de arte como investigação do mundo, que também coloca em debate a dominação dos senhores sobre os escravos e a complexidade das interações sociais do Brasil atual.
Paulo Nazareth, o artista-andarilho, foi da África a Lyon a pé e anotou tudo ao refazer um dos itinerários negreiros. No MAC, sua instalação acumula poesias, pequenos textos antropológicos e desenhos que nos revelam detalhes dessa improvisação. Outro brasileiro, o carioca Gustavo Speridião, com um arquivo singular, reinventa o universo com ácidas críticas ao sistema e Thiago Martins de Melo reexamina a história complexa do Brasil desde a escravidão e coloca em evidência as tensões e as distorções sociais e econômicas que permanecem até os dias e hoje.
Do outro lado da cidade, na Fundação Bullukian, o americano Roe Ethridge, autor das quatro imagens de divulgação da Bienal que traduzem a temática da mostra, divide o espaço com Yoko Ono. Enquanto ele exibe cenas realistas, tomadas em sua casa com os filhos, dias depois da passagem do tornado Sandy, Yoko corrompe a forma de amostragem. Em vez de ocupar uma sala escura, coloca ao ar livre uma grande tela sobre a grama, que dá forma à matéria e funciona como recipiente a ser preenchido pela informação que vem dos internautas a partir da pergunta: “Qual o seu sonho de Verão?”. A instalação tem a potência de nos fazer compartir a história e de intervir, enviando também nossos sonhos. Aos 80 anos, Yoko contribuiu para revigorar a Bienal de Lyon com uma intervenção narrativa que, talvez, Marguerite Duras também compartilhasse.
A história da escravidão e a exploração do homem foi contada também pelo norte-americano, Tom Sachs, que colocou uma réplica do navio negreiro Victory, do século XIII, na nave central na igreja Saint-Just do ano 300. Dentro da caravela, colocou bonecas Barbie, em um discurso sobre o uso indiscriminado do corpo. Segundo Sachs, a sociedade americana não atingiria o estágio atual sem o impulso da mão de obra escrava negra, nem mesmo chegaria à Lua.
Entre os jovens europeus, a inglesa Helen Marten aparece mais consistente em Lyon que na Bienal de Veneza, ao reorganizar sua instalação com pintura de grande dimensão e objetos variados, em forma de um diálogo. A poesia dos fragmentos, a fratura e a expressividade dos materiais, as referências, oferecem ao observador a possibilidade de apreciação de recortes múltiplos.
A potência da arte chinesa iluminou a La Chaufferie, do antigo hospital de l’Antiquaille, onde Zhang Ding, de Shanghai, instalou sua escultura Control Club, 2013. A torre, com referência religiosa e silhueta severa, emite sons de sinos que se propagam por 360 graus e se misturam a uma sinfonia de Beethoven, dando suntuosidade ao espaço cujo entorno deteriorado e grafitado cria uma atmosfera de contrastes entre passado austero e um presente degradado.
Estendendo-se também por toda a grande Lyon, a Bienal ainda se desdobra nos projetos Veduta (vista, em português), destinado ao público amador para contar suas histórias de arte, e Résonance, que acontece em 130 locais diferentes, entre galerias, instituições culturais, associações de artistas. Enfim, é Lyon e a Grande Lyon em performance permanente até 4 de janeiro de 2014, quando encerra a Bienal e a cidade já se prepara para o festival de dança, teatro e cinema.
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