Em diálogo com a grande profusão de debates e produções acerca das questões sobre gênero e sexualidade tanto no campo da arte quanto da cultura em geral, assim como em diversas outras áreas, a 11ª edição do Caderno Sesc_Videobrasil – “aliança de corpos vulneráveis: feminismos, ativismo bicha e cultura visual” – se coloca como mais um sintoma dentro desse grande campo de discussão, porém com alguns diferenciais importantes. A escolha de Miguel A. López, jovem curador peruano como organizador da publicação, gerou alguns movimentos interessantes, como o próprio recorte temático do caderno que acaba se conectando ao que poderíamos identificar como uma espécie de “panoramas do sul” – temática presente nas últimas exposições e projetos desenvolvidos pela Associação Cultural Videobrasil. Este “sul” é abordado de forma bastante ampla como um “sul global”, através de uma geopolítica não eurocêntrica e muito menos norte-americana, ou seja, fugindo de uma organização de mundo pautada em antigas, porém persistentes, visões de centro e periferia, alta e baixa cultura, “terceiro mundismo”, países emergentes e subdesenvolvimento. Dessa forma, a presença de jovens pesquisadores como o espanhol Aimar Arriola e a brasileira Fernanda Nogueira na publicação é uma espécie de resultado dessas escolhas, que resultam na difusão e promoção de outros/novos olhares e abordagens dentro dos debates sobre gênero e sexualidade, complexificando essas problemáticas.
Isso por si só já se coloca como algo bastante potente, pois a publicação, assim como outros projetos e produções recentes no contexto latino e centro-americano, expressa uma atual e não menos óbvia efervescência a respeito dessas questões acerca de gênero e sexualidade. Não que o mundo de uma forma geral não esteja repensando as políticas do corpo, mas em países da América Latina e América Central, esses debates ganham contornos diferentes, visto que muitos deles passaram por longos governos ditatoriais que geraram processos de desubjetivação e descorporificação de algumas camadas da sociedade – principalmente de minorias como transexuais, gays, entre outros, tornando esse um fator histórico importante de ser considerado.
Além disso, no período pós-ditaduras, no início dos anos 1980, quando a maioria daqueles países já passava por movimentos de redemocratização e abertura política e econômica, surge o vírus do HIV e consequentemente a epidemia da Aids, que gerou outros processos marcantes nessas camadas da sociedade. Ou seja, em um recorte temporal bastante longo da história dessas regiões, tais grupos se tornaram invisíveis ou marginais, por serem inseridos em uma dinâmica de exclusão, por exercerem formas de vida maravilhosamente não normativas dentro dos complexos cenários sociopolíticos e econômicos presentes nesses países.
Sendo assim, os autores presentes na publicação e suas respectivas pesquisas são extremamente importantes e necessários por trazerem novas narrativas a respeito desse “queer” latino ou de outras partes do mundo relegados a uma existência outsider, justamente por não estarem situados em regiões econômica e politicamente hegemônicas. Nesse sentido, podemos destacar a pesquisa de Fernanda Nogueira sobre o “Movimento de Arte Pornô no Brasil”, que apresenta ao público a produção de um grupo de artistas que ainda se mantém bastante desconhecida dentro da própria história da arte brasileira. Como a própria pesquisadora coloca, a pesquisa funciona como uma “desprogramação” e confrontação com as histórias hegemônicas que continuam sendo escritas. É uma maneira de ativar outras histórias, ou “histórias menores”, das práticas artísticas e políticas, escapando de armadilhas conceituais coloniais constantes, como “origem”, “descobrimento”, “originalidade” e “autoria” (tão conectadas aos autoritarismos), e passar a considerar a geopolítica de produção e distribuição de conhecimento e os sujeitos que dela participam, empregando uma contrametodologia para desconstruir a criação do obsceno. Da mesma maneira, podemos analisar os ensaios do curador Aimar Arriola, com seu manifesto Revolução Queratina, e do artista Ming Wong ao escrever sobre a performer ou, como denomina o próprio autor, diva pop transexual Bülent Ersoy.
Outro ponto bastante pertinente a ser observado na publicação é a proposição de Miguel A. López em também trabalhar como eixo o que se nomeia na edição como “feminismos”, pensando o feminismo em seu viés contemporâneo, mas não só, abordando também o “feminino” como uma existência extremamente problemática em um mundo construído em regimes masculinos, pautados pelo falocentrismo, patriarcado, etc. Essa proposição do curador é fundamental, pois aversões como a homofobia, a transfobia e a misoginia ou comportamentos como o machismo derivam da incapacidade de lidar com o feminino e sua potência. Ou seja, essas formas de opressão só irão acabar com a diminuição gradativa do modus operandi machista e misógino. Sendo assim, faz muito sentido partir do feminino e – este complexificado pelas performatividades gay, trans e queer – pensar em uma aliança de corpos vulneráveis para esses sujeitos, pois o feminino se coloca de fato como um eixo, um vértice dentro dessas questões de gênero e sexualidade, como algo de incômodo e essencialmente político.
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