Crítica: a descolonização na 32ª Bienal de São Paulo

Cineasta do Vídeo nas Aldeias em ação. Foto: Divulgação
Cineasta do Vídeo nas Aldeias em ação. Foto: Divulgação

Há mais de 50 anos, o antropólogo Claude Lévi-Strauss observava que a aparente singeleza tecnológica das sociedades indígenas implica, na realidade, mundos voltados para “uma vida que vale a pena ser vivida”. Essa singeleza, na realidade,
é um efeito da miopia moderna, cuja ideia de desenvolvido nos conduz cada vez mais para o abismo. A suposta conquista do desenvolvimento, dizia ainda Lévi-Strauss (em “As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico e social”), só existe por causa da destruição das sociedades indígenas, pelo saque de seus recursos minerais e territoriais; um saque de seu próprio corpo – a Terra, Pachamama –, que os modernos separam de si e submetem à sua voracidade produtiva.

A reversão de tal processo é responsabilidade de todos os agentes pensantes contemporâneos, ainda mais em tempos obscuros. É tarefa de artistas, curadores, intelectuais e escritores envolvidos em urgências cuja transversalidade não pode ser compreendida como mera intromissão ideológica na esfera da arte; como suposto desvio da atenção do público de grandes exposições tais como a Bienal – aliás, recorde na presente edição. Entretanto, é curioso que a autonomia da arte, mesmo dissolvida há tempos, pareça sobreviver na cabeça de críticos brasileiros.

Para Rodrigo Naves (em artigo no jornal O Estado de S.Paulo, em 20 de setembro de 2016), quando se afasta uma “visão paternalista do povo brasileiro”, supostamente presente na 32ª Bienal de São Paulo, é que surgem os poucos momentos convincentes “em que se incorpora com perspicácia a criação das camadas mais pobres das populações mundiais a conquistas da arte moderna e contemporânea”. No mais, a exposição lhe pareceu fracassada por se fiar no papel redentor de minorias que, no entanto, contribuiriam apenas para “mudanças pontuais de leis e costumes, embora sua pouca vocação para o poder – talvez para a nossa sorte – não as coloque como alternativa de governo”. A arte teria, portanto, faltado na Bienal, por seu excessivo apego às “ideologias, [que] são tigres de papel”.

A crítica Aracy Amaral (O Estado de S.Paulo, 27 de setembro de 2016), por sua vez, desdenha a presença excessiva de trabalhos que não atingem o nível de verdadeiras “obras”, de uma “pintura maior”, de um “saber fazer” característico da produção de artistas individuais. A presença indígena estaria ali reduzida ao que ela apresenta como o “trabalho de Vincent Carelli”. A tentativa de “diálogo com o meio ambiente” ficaria, ainda, comprometida pela “dificuldade de uma poética ou do contato com a realidade atual através da arte”, que não teria reagido, por exemplo, à tragédia da mineradora Samarco no Rio Doce.

Para alguém que não é crítico de arte, como eu, essas impressões são esclarecedoras. Elas revelam uma dificuldade de nossa intelligentsia em assimilar os desafios demandados pelo colapso contemporâneo. Ora, as questões impulsionadas pela tal “ecologia”, como bem mostraram Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro em Há Mundo por Vir? (2014), não pertencem mais a uma área, mas a uma era. A 32ª Bienal de São Paulo, entre erros e acertos, reflete contudo sobre o papel de protagonismo que a arte pode ter nestes tempos conturbados.

A presença do Vídeo nas Aldeias é significativa. O seu mérito está em extrapolar a figura do criador individual – Vincent Carelli – para se transformar em um agenciamento coletivo. Seus projetos permitiram que, pela primeira vez em nossa trajetória de dominação, os povos indígenas tomassem as rédeas das tecnologias audiovisuais e transportassem para elas os seus critérios, que não desapareceram com os novos instrumentos visuais, mas, antes, os traduziram de maneira singular. Uma atenção maior às formas de pensamento presentes nos filmes do Vídeo nas Aldeias poderia, também, oferecer elementos diversos para uma alternativa mais duradoura (e quiçá mais feliz) do político, fracassado na versão “homem branco falogocêntrico”.

O trabalho da colombiana Carolina Caycedo colhe igualmente seus frutos do engajamento ativista que, se não realça o (também importante) papel do artista individual, nem por isso despreza a poiesis, ali capaz de produzir uma reflexão contundente sobre a contenção dos fluxos. É o que vemos nas montagens fotográficas de barragens (metáforas para represamentos diversos, políticos). É o que se destaca, também, na série que compreende a narrativa visual Watu e seu diálogo com as escritas pictográficas ameríndias, tanto do ponto de vista da construção plástica quanto do texto, que incorpora as especulações cosmológicas indígenas sobre o desastre ambiental do Rio Doce.

De toda forma, a presença de pensadores das formas expressivas – o que me parece mais amplo do que a figura do artista ocidentalizado – poderia ser ampliada para uma presença mais efetiva de agentes outros. É ainda sob crivo de artistas não indígenas (como Bené Fonteles, Maria Thereza Alves ou Gabriel Abrantes) que indígenas marcam sua presença, assim acomodados nas narrativas e referências dos outros. Trata-se, contudo, de uma Bienal que abre o seu eixo curatorial para a arte produzida na África, e a partir de seus dilemas, como demonstram os trabalhos de Misheck Masamvu e Mmakgabo Helen Sebidi. A armadilha, no entanto, estaria em valorizar suas pinturas e desenhos apenas enquanto “conquistas” atingidas pela adoção de uma forma plástica consagrada pela arte moderna, como se isso fosse critério necessário para aferir a sua pertinência e introdução no meio seleto da boa arte.

Seria igualmente insuficiente desvalidar outras tantas propostas que exploram assuntos candentes tais como o feminismo, o colonialismo e o ativismo da imaginação como meros improvisos antropológicos desprovidos de alta elaboração estética ou acadêmica. Se é verdade que nesta Bienal, assim como em outras tantas exposições recentes de grande porte, a reflexão criadora, transversal e politizada, talvez ainda esteja em busca de seu modo de expressão para a produção do diálogo desafiador, não é menos verdadeiro que ela destaca, acima de tudo, uma ação transformadora. É justamente esta que pode ainda fazer da arte, para além de suas configurações elitistas, uma ferramenta poderosa de exercício crítico, capaz de projetar as condições de uma vida que merece ser vivida.


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