De volta ao passado

Na imagem, espectador dentro da instalação penetrável "Tropicália",  de Hélio Oiticica, em sua montagem feita para a exposição The Great Labyrinth, realizada em Frankfurt, na Alemanha, em 2013. Traindo o sentido da obra, que só se dá com a participação ativa do público, a mesma foi apresentada fechada na Bienal do Mercosul de 2015. Foto: Hélio Campos Mello
Na imagem, espectador dentro da instalação penetrável “Tropicália”, de Hélio Oiticica, em sua montagem feita para a exposição The Great Labyrinth, realizada em Frankfurt, na Alemanha, em 2013. Traindo o sentido da obra, que só se dá com a participação ativa do público, a mesma foi apresentada fechada na Bienal do Mercosul de 2015. Foto: Hélio Campos Mello

Foi lamentável. A 10ª edição da Bienal do Mercosul, Mensagens de uma Nova América, que aconteceu de 31 de outubro a 6 de dezembro do ano passado, encerrou um ciclo histórico de mostras experimentais e extremamente investigativas, que projetou Porto Alegre no circuito internacional, colocando ainda em xeque o estilo personalista de gestão das bienais brasileiras.

O que diferencia a edição mais recente das anteriores, em essência, é que ela se tornou um projeto ambicioso, com 646 obras de 263 artistas de 29 países, mas muito confuso, mais voltado para o passado do que para o presente, além de abarcar temas um tanto óbvios.

Sob a responsabilidade do gaúcho Gaudêncio Fidelis, Mensagens de uma Nova América se organizou em torno de oito mostras: Biografia da Vida Urbana; Modernismo em Paralaxe; Antropofagia Neobarroca; Olfatório: o Cheiro na Arte; Aparatos do Corpo; A Poeira e o Mundo dos Objetos; Marginália da Forma; e Plataforma Síntese. Já pelos títulos, se percebe a disparidade de vertentes temáticas, em uma dispersão caótica, além de inusitada.

No geral, cada seção buscava misturar peças históricas, como Tropicália (1967), de Hélio Oiticica, vista em Marginália da Forma, com outras mais atuais, mas no geral o contemporâneo se tornava muito menos contundente que o já consagrado. No caso de Tropicália, penetrável que deve ser vivenciado pelo público, a obra estava fechada para participação, uma contradição irresponsável.

Pior, contudo, é a literalidade das abordagens em cada mostra: na seção Biografia da Vida Urbana, obras que abordam a vida nas cidades. Em Aparatos do Corpo, como era de se esperar, estavam desde peças de Nazareth Pacheco, feitas com giletes ou instrumentos cortantes, até uma réplica do traje New Look (1956), de Flávio de Carvalho, exposta em uma vitrine que mais parecia um caixão. O mesmo tipo de operação se via em Olfatório: o Cheiro na Arte, onde obviamente estão trabalhos que apelam para o olfato, como Antes que Eu te Engula Carrocell Flowers (2007), uma das esculturas de Ernesto Neto com temperos.

Além dessa simplificação excessiva na abordagem de cada eixo escolhido, sobressaiu-se um discurso bastante provinciano que “retoma sua vocação histórica ao priorizar novamente a arte produzida nos países da América Latina”. Ora, o problema aí é que as edições anteriores se mostraram eficazes em abordar questões locais sem necessariamente recorrer a artistas locais. Reduzir o escopo da exposição a artistas latinos foi um erro crasso, já que a circulação da produção atual questiona justamente a base geográfica dos artistas.

Antonio Manuel, "Soy Loco Por Ti". Apresentada na seção Olfatória: O Cheiro na Arte. Foto: Guilherme Dias
Antonio Manuel, “Soy Loco Por Ti”. Apresentada na seção “Olfatória: O Cheiro na Arte”. Foto: Guilherme Dias

A Bienal do Mercosul destacou-se internacionalmente justamente por dar visibilidade a problemáticas regionais, sem, contudo, ser provinciana. Esse ciclo teve início em 2006, com sua 6ª edição, quando o curador Gabriel Pérez-Barreiro foi selecionado em uma competição por meio de um projeto. Parecia então que a instituição gaúcha se aproximava do modelo da Documenta de Kassel, na Alemanha, que também escolhe seus diretores artísticos por projeto aprovado por um comitê de especialistas em arte.

Em Porto Alegre, esse modelo revelou-se especialmente consistente e a 6ª Bienal inovou em vários aspectos: levou o artista uruguaio Luis Camnitzer para cuidar do programa educativo, seccionou a mostra em pequenas seções intimistas e incluiu obras de artistas de áreas distintas como música ou cinema (o que já virou tendência), entre alguns exemplos.

As edições seguintes continuaram na seleção por projetos e, novamente, com resultados arrojados, a começar pelos responsáveis pela 7ª edição: o artista chileno Camilo Yáñez e a curadora argentina Victoria Noorthoorn. Vários artistas, aliás, também exerceram a curadoria desta mostra, como Laura Lima, Lenora de Barros e Artur Lescher. Uma das seções mais surpreendentes foi a organizada por Lima, denominada Mostra Absurda, toda disposta em toneladas de areia em um dos galpões da Bienal, uma radical ação expográfica. Não por acaso, Noorthoorn foi, a partir daí, escalada para cuidar da Bienal de Lyon, em 2011, e por conta de seu trabalho convidada a apresentar um projeto para a Documenta de Kassel.

O colombiano José Roca e a mexicana Sofía Hernández Chong Cuy também foram selecionados por projetos para a 8ª e 9ª Bienal do Mercosul, respectivamente, apesar de já não ter sido mais uma competição aberta a todos os interessados, como foi nas edições anteriores, mas fechada a convidados. Ambos, contudo, apresentaram mostras complexas. Foi sob a direção de Roca, por exemplo, que Aracy Amaral apresentou pela primeira vez os zoólitos, que recentemente dominaram o debate sobre o 34º Panorama da Arte Brasileira, organizado pela curadora no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Já da 9ª Bienal, uma das imagens mais marcantes que permanecem é a obra de Cinthia Marcelle, Viajante Engolido pelo Espaço, realizada a partir de uma “parceria” com uma empresa de mineração do Grupo Gerdau, uma das patrocinadoras da Bienal. Em 2013, a artista antecipou uma das cenas mais contundentes de 2015: as marcas da lama após o rompimento da barragem de Mariana – no caso da obra era pó poluente da mineradora.

Mensagens de uma Nova América fracassou ao buscar tornar a Bienal do Mercosul novamente um evento local, recorrendo aos cânones consagrados para obter legitimação, mas tendo grande dificuldade em falar sobre o presente. No entanto, o que dá importância a uma bienal é justamente sua capacidade de falar sobre o momento atual.

* O jornalista Fabio Cypriano viajou a convite do Banco Santander

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