Um dos pesadelos recorrentes dos venezianos e de todos que amam Veneza é que essa cidade histórica incomparável foi submersa pelas águas do Mar Adriático com todos seus palazzi e séculos de tesouros de arte. Na vida real, Veneza está gastando milhões de euros na construção de sofisticado sistema de diques e comportas, o Mose (Moisés, em italiano), para proteger da ameaça, ainda mais provável com o aquecimento global e o derretimento das calotas polares.
Se depender da imaginação da talentosa dupla de jovens artistas coreanos Moon Kyungwon e Jeon Joonho, o apocalipse aquático já aconteceu e Veneza, assim como grande parte da Terra, está submersa. A partir dessa ideia, Moon e Jeon fizeram The Ways of Folding Space & Flying (modos de dobrar o espaço e voar), um dos trabalhos mais inteligentes de toda 56a Bienal. Trata-se de uma fascinante projeção digital multicanal de grande formato que ocupa toda a planta curva e transparente do pavilhão coreano e o transforma em um interior de nave espacial.
No filme, composto de gelados tons azuis e brancos, uma sobrevivente-astronauta, de pele muito pálida e olhos amendoados, habita um ambiente minimal-futurista com uma “biblioteca” de copos d’água em alarmante decréscimo de estoque. Há pitadas explícitas do clássico décor de 2001 –Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Da também clássica série de TV Jornada nas Estrelas (Star Trek), de Gene Roddenberry, vem o conceito da “dobra”, o encurvamento do espaço usado na ficção científica para se contornar a barreira da velocidade da luz (parâmetro incontornável segundo Einstein e sua teoria da relatividade) e se adquirir uma “velocidade empenada”, mais rápida que a luz. Embora Moon e Jeon, buscando uma explicação mais cult, sustentem que esse princípio de física delirante teria vindo mesmo de uma prática taoista de meditação. Uma questão para nerd algum botar defeito, enfim.
O que importa mesmo é que o filme-instalação é fascinante, com uma visualidade muito bem construída em torno de breve, mas eficaz roteiro. A ação se passa em uma nave-cápsula do tempo viajando em espaço imponderável. A produção utiliza tecnologia de ponta (computação gráfica e realidade virtual, entre outros recursos digitais) para tornar visível esse futuro. Com fina ironia, os cultuados passeios pelos bosques dos Giardini, local onde se situam os pavilhões nacionais permanentes da Bienal de Veneza há mais de um século, foram reduzidos no filme a uma espécie de anel-esteira ergométrica com paisagem verde virtual, que a protagonista percorre para se exercitar. Nenhuma menção a obras de arte que, sustenta o roteiro, nessa época pós-dilúvio final não teriam mais a menor importância. A transcendência estaria garantida por outros meios mentais.
Será que esse detalhe irônico irritou o júri de premiação? Talvez. O que sabemos é que ainda não foi dessa vez que um biscoito fino da arte tecnológica foi considerado digno de receber um Leão de Ouro. Não importa. O também coreano e pai da videoarte Nam June Paik (1932-2006), uma das personalidades mais marcantes do século XX, por certo teria enorme orgulho dessa descendência.
Deixe um comentário