Dogma e os processos artísticos de José Rufino

Ao analisar obra por obra, da mostra Dogma, de José Rufino, dá para olhar para trás e perceber os arranjos de seus processos artísticos ao longo de 30 anos. Como estratégia de leitura, ele criou eixos formados por momentos dogmáticos que se transformaram em paradigmas da ética, da vida, da estética, da própria filosofia de vida, inclusive da história da estética. “Coisas que tiveram de ser suplantadas para que minha personalidade criativa pudesse acontecer e que se tornaram inerentes a meu trabalho, como o engajamento, presente em tudo.” Na verdade, foi um reviver de cenários afetivos do ponto de vista político, ideológico e familiar. Ao lado de uma instalação, escultura ou gravura, um desenho feito por seu pai, Antonio Augusto Almeida, quando era prisioneiro político, ganha estatuto de obra na exposição: o rosto de Karl Marx inacabado.

Dogma tem também outros dogmas, muito íntimos, que estão vivos na ideologia como padrão, no próprio comunismo, que, na opinião de Rufino, pode ter falhado por tentar estabelecer um modelo para o desejo humano. “Era uma configuração que tinha limites e a natureza humana não é assim, é sempre de bordas completamente incompreensíveis.”

Rufino mora e trabalha em João Pessoa, na Paraíba, protegido pelo verde de seu sítio cravado em um bairro da cidade. Esse afastamento dos grandes centros de arte provoca uma noção diferente de tempo em relação à criação. “Tenho uma quantidade menor de convites para exposições, eventos e para tudo o que possa me tirar do processo criativo, e isso me proporciona um mergulho, uma verticalidade de pensamento mais profundo.”

Comentamos a experiência de viver em um lugar como o Nordeste, ou um lugar fora dos eixos, onde o centro do mundo fica ali, porque, a rigor, a pessoa é quem faz o seu centro e a periferia vira o resto. “Mesmo estando lá, sinto como se o mundo inteiro fosse essa borda e, a partir dali, irradio meu pensamento na medida do possível.”

Questões da antropologia, sociologia e cultura local até hoje não estão em um plano necessário para a compreensão do trabalho de Rufino. Muitas vezes, o deslocamento do Nordeste para São Paulo, do Nordeste para o Rio de Janeiro ou para qualquer outro lugar é como uma viagem que leva um fragmento, e todo o resto permanece: “Esse resto é minha sensação de mundo profunda que me gerou e que passa pela cultura popular, por uma sensação nordestina de um certo banzo, de uma relação com a natureza que obviamente é diferente, e eu acho que isso ainda não foi traduzido na leitura que tem sido feita de meu trabalho”.

Rufino enveredou pela arte sem um estudo formal, mas impulsionado pelo que chama de “coragem covarde”, e é assim que ele vai seguindo, inclusive no campo formal, tratando da estética do trabalho com descoberta pessoal e com a intuição que o aproximou de certas categorias artísticas. “Quando fui percebendo que a arte tem essa coisa carnal, e que a obra surge do calor de uma inquietação, tanto na literatura quanto nas artes visuais, eu me encaixei nesse processo.”

Durante a montagem de Dogma, Rufino ouviu comentários de algumas pessoas, os quais já se acostumou a ouvir: “Estou me sentindo mal neste espaço” ou “Aqui tem um peso”. Então, é quase como se ele estivesse trazendo, por meio de objetos pintados, desenhados, costurados, feitos de cimento ou móveis velhos, certos fantasmas que pairam sobre as peças. “Eles caem quase na aura de algo que está fora do plano material, no plano de certo espírito que vem junto do trabalho. Isso também me dá uma sensação de que as obras não são individuais. Elas são indivíduos, mas pertencem a uma espécie de conjunto de entidades indissociáveis.” Por isso, a categoria de objetos em si, separada de contexto não funciona para Rufino. “Eu não sei fazer um trabalho apenas formal, construído, por exemplo, de MDF laqueado, a partir de um projeto. Ele deverá ter passado por esse caldo de espíritos anterior para poder florescer e ter sua independência, sua voz, livre da minha mão, e escapar disso.”

Dogma
Até 2 de junho
Central Galeria de Arte
Rua Mourato Coelho, 751 – Vila Madalena – São Paulo – SP
11 2645-4480 – centralgaleriadearte.com


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