Em novo livro, André Penteado investiga influencia da Missão Francesa no Brasil

Detalhe de Retrato de Félix Émile Taunay, sem data, de Nicolas Antonie Taunay
Detalhe de Retrato de Félix Émile Taunay, sem data, de Nicolas Antoine Taunay

O famoso historiador Carlo Ginzburg costumava comparar o estudo do passado a uma investigação de detetive. Nos rastros do tempo, seria possível encontrar os sinais para a interpretação do presente. À sua maneira, o fotógrafo André Penteado adota um procedimento similar: “Em meu trabalho, reflito sobre as narrativas históricas e como elas definem o que somos hoje”, afirma. Em seu novo livro, Missão Francesa, lançado pela editora Madalena, Penteado se dedicou a estudar possíveis heranças da Missão Artística Francesa, grupo de artistas que aportou no Rio de Janeiro, em 1816, para fundar a primeira academia de arte do Brasil.

A publicação faz parte de uma trilogia do autor sobre eventos históricos anteriores à popularização da fotografia. Lançado em 2015, o primeiro livro trata da revolta paraense Cabanagem (1835-1840). O último, que está em fase de produção, será sobre a Revolução Farroupilha (1835-1845). O intuito da série é discutir grandes questões da sociedade brasileira a partir da fotografia. “Quando fiz o livro sobre a Cabanagem, eu queria questionar esse estereótipo do brasileiro como um homem cordial, que não se revolta. Já ao abordar o tema da Missão Francesa, me interessava tratar da importação de modelos. É irônico como até hoje ainda permanece essa ideia de que as soluções para os nossos problemas virão de fora”, pontua o fotógrafo.

Em busca dos vestígios da Missão Francesa, Penteado percorreu as ruas cariocas durante dois anos. Ele registrou desde locais emblemáticos, como o Museu Nacional de Belas Artes, onde está grande parte da produção do período, até personagens associados de alguma forma ao movimento, como os descendentes do pintor Nicolas-Antoine Taunay, que foram localizados por meio de contatos obtidos por uma cunhada de Penteado.

Nem sempre as fotos têm conexões evidentes com o tema, como enfatiza o artista: “Ao pesquisar sobre o assunto, faço uma lista de imagens possíveis para o projeto, que são basicamente os lugares onde irei fotografar. Mas o interessante é que, quando estou em campo, acontecem coisas imprevisíveis e novas imagens se oferecem”.

Ele relembra, por exemplo, o seu encontro com o porteiro José Inácio da Silva. Andando pelo Rio, o artista avistou um prédio que levava o nome de Grandjean de Montigny, principal arquiteto da missão. O porteiro utilizava um uniforme com o mesmo nome bordado. Impressionado com a situação, o artista fez um retrato de José e o publicou no livro. Na página ao lado, há uma tela, de 1850, que representa o maestro Francisco Manuel e suas enteadas. Provenientes de épocas distintas, as duas imagens acabam dialogando, enfatiza Penteado: “Eu faço um jogo nessa página, confrontando a pintura do maestro e a sua família, que representam a nossa elite, com a imagem do porteiro”, conta.

Essa união entre passado e presente também aparece em uma foto da Praça XV de Novembro, no Rio de Janeiro. A imagem é uma referência a uma tela de Jean Baptiste-Debret que retrata a aclamação de Dom Pedro II. Na pintura, o monarca aparece na varanda de sua residência sendo aclamado pelo povo. Penteado foi ao mesmo edifício, que atualmente é a sede do Paço Imperial, e subiu em uma das varandas. “Eu tentei me colocar no lugar que esteve o imperador. Fiz uma foto da praça com um ponto de vista semelhante ao de Dom Pedro naquela ocasião. Assim, tento trabalhar em vários graus possíveis de conexão”, pontua.

Esses vários fragmentos ganham um sentido maior na edição. Penteado tirou cerca de três mil fotos para o projeto, tendo demorado mais de um ano até selecionar as imagens finais. Ele conta que o processo de montagem deste livro, em particular, foi bastante difícil: “Eu estava preocupado, não conseguia criar um sentido, uma coerência entre as imagens. Até que me dei conta de que não havia fotografado um grupo importante: os estudantes da atual Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio. Esses retratos é que amarraram a obra”.

Ao fim da edição, o livro foi dividido em três partes. Na primeira, há registros dos museus e das obras de arte, revelando o efeito do tempo sobre eles. Na segunda parte, Penteado reproduz um documento publicado na revista do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional): a carta do líder da missão, Joachim Lebreton, explicando como seria o projeto de uma instituição de ensino de artes no País. A última parte, por sua vez, apresenta os retratos dos alunos da EBA.

O fotógrafo comenta a organização da obra: “As primeiras imagens têm uma grande energia, são registros de lugares antigos. Já a carta do Lebreton mostra um projeto que nunca se concretizou de fato, situação muito recorrente na nossa formação. Eu quis terminar com as imagens dos estudantes, como um sinal de esperança mesmo. Eles são a continuação dessa história, produzindo diante das adversidades de uma educação tão precária como a nossa”, pontua.

Nos últimos anos, a Missão Francesa foi tema de querelas historiográficas. A pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz defende que os artistas teriam vindo por conta própria e não a convite de Dom João VI, como alega a versão oficial. Em seu trabalho, Penteado não entra nesse debate. “Não me proponho a explicar o evento histórico, muito menos a dar uma visão definitiva. Como um arqueólogo, eu reúno pistas e rastros do passado, sem criar uma narrativa linear, são camadas de sentido que se sobrepõem. Ao ler a obra, o público navega por essas imagens e termina com uma curiosidade, sem ter muitas explicações.”


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