Com a curadoria de Mayra Laudanna, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) realiza grande exposição de Alex Flemming, reunindo obras voltadas para o tema do corpo e abrangendo todas as fases da produção do artista, desde as gravuras sobre tortura, criadas no início dos anos 1980. Impactantes pela força do conjunto e pela sua qualidade plástica, as obras em exibição mostram unidade e revelam que, apesar das variações de técnicas e de procedimentos, as diversas fases da produção do artista se articulam e dialogam entre si. O título provocador, RetroPerspectiva, refere-se ao termo cunhado pelo poeta Haroldo de Campos (1929-2003), que desenvolveu em 1990 o texto Ex touros de Alex Flemming sobre a instalação realizada, naquele ano, nas escadarias do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Já a museografia não obedeceu critérios cronológicos, mas criou zonas de tensão entre as obras, pois na produção de Flemming seu corpo e o corpo de sua obra se entrelaçam. Enquanto muitos trabalhos falam do corpo na sua intimidade, outros expressam desejo, poder, violência e morte.
Objetos íntimos, e não objets trouvés
Flemming se apropria de objetos que já são seus, aos quais acrescenta cor e texto. Serve-se deles, não apenas como suporte, mas como coisas significantes, impregnadas de histórias. Por exemplo: as malas, companheiras de viagens; ou as roupas do seu dia a dia, inclusive as íntimas, descartadas pelo artista. São obras inquietantes, como os sapatos abandonados e exibidos em um círculo fechado, que nos reportam ao campo de Auschwitz. Malas ocultam sempre seus conteúdos e sugerem percursos e territórios, mas os objetos-mala de Flemming acrescentam metáforas de deslocamento, abandono e morte, e adquirem hoje nova força dramática, num mundo de conflitos e de refugiados. Também a série dos Body-Builders, em que o artista sobrepõe à pele do atleta os mapas dos conflitos recentes nos Balcãs e no Oriente Médio, é contaminada pelos acontecimentos atuais na Síria e na Europa. Já as roupas reportam-se ao artista e carregam energia, como se sua pele ainda transpirasse dentro delas. As peças são apresentadas amassadas, sublinhando aspectos de roupas usadas, e sendo depois ensopadas de tinta acrílica brilhante, de cores fortes – amarelo, vermelho, azul –, acrescidas de letras que formam palavras de impacto, de humor e de crítica, como a palavra “abandono” na bermuda amarela. Mesmo depois de transformados em arte e do ingresso no mundo das linguagens simbólicas, os objetos apropriados pelo artista não perdem os sinais anteriores, que permanecem gravados de modo indelével. Por isso mesmo, atuam como testemunhas impregnadas de acontecimentos de outros tempos. Parecem personagens, atores que declamam seus textos.
Colorista extraordinário, tanto no uso das tonalidades e vibrações sutis quanto no emprego dos contrastes de cor pura, Flemming produz uma pintura densamente trabalhada em planos e superfícies justapostas. Através de máscaras que são reutilizadas, imprime imagens e fragmentos de imagens que se articulam sobrepostas, ocultando e revelando figuras. Na série Atletas, por exemplo, contrapõe corpos de serena e eterna beleza (escultura de Apolo) a outros de vida transitória – o corpo de mármore e o corpo de carne.
Beleza, prazer e flagelação
Desejo, poder, violência e morte se fundem na obra do artista. Narciso, presente no pequeno objeto de acrílico, apresenta o torso erótico e musculoso que se espelha. É uma homenagem à beleza. Mas trata-se de um corpo poderoso, objeto do desejo, com seus prazeres e riscos. Nas telas com vulvas e falos, as poéticas se expressam por tonalidades de poucos contrastes, de penumbra, em que o sexo surge dissimulado, mas com extraordinária força sedutora. A curadora Mayra Laudanna conseguiu ainda reunir um poderoso conjunto da série de criaturas, espécie de bestiário de Alex Flemming, realizado nos anos 1980 – A Ubiquidade, A Opção, A Riqueza, O Orgulho, entre outras telas. São personagens borgianos, inspirados nas gravuras de Ulisses Androvandi (1522-1605) sobre seres mitológicos meio animais, meio humanos, inspirados nos relatos do século XVI sobre viagens ao novo mundo. Sobre elas, Caio Fernando Abreu (1948-1996) escreveu: “Explícitas, enormes, agressivamente coloridas e sem nenhum intimismo, elas materializam simbolicamente as fantasias presentes há séculos na mente humana. E incomodam, ao nos ameaçar com a materialização da loucura de nossa própria condição.”
Nas pinturas mais recentes, de vigor pictórico, como Olympia no Hospital ou o retrato de uma faxineira, Flemming discute, mais uma vez, o tema da morte, já analisado em um texto de Katia Canton, autora do livro Alex Flemming, uma Poética… Nestas telas, as figuras são desenhadas em seu contorno, sem matéria corpórea, sem carnalidade. Apenas as roupas, os adornos e os objetos possuem materialidade. Há ainda em RetroPerspectiva uma instalação com inúmeros laptops descartados, nos quais Flemming interfere com cores vivas e brilhantes, e transforma-os em lápides, com nomes de pessoas, agrupando-os como se fossem túmulos. A obra causa inquietação, pois computadores foram criados para armazenar memórias, mas aqui representam o abandono e a morte. No mesmo espaço uma tela de suporte fotográfico exibe a cena da flagelação de Cristo, aquele que ressuscitou da morte, provocando novas indagações.
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