Ao visitar em Marselha, no Musée d’Archéologie Méditerranéenne, em 1993, a exposição Poèmes de Marbre, não pude deixar de pensar em Brancusi e Max Ernst. Os poemas de mármore eram esculturas préhistóricas procedentes das ilhas Cyclades, no Mar Egeu, e de terras como Turquia, Pérsia, Chipre e Sardenha. O tratamento do mármore branco, a simetria, a forma sintética das figuras não realistas – mas que sugeriam imediatamente cabeças e corpos humanos masculinos e femininos, além das formas perfeitas de alguns utensílios também expostos -, se confundiriam com obras dos dois artistas citados, especialmente Ernst que no conjunto de obras As fases da noite: Capricórnio, de 1947, parece ter reproduzido detalhes de uma delas.
As esculturas das Cyclades são arte primitiva, se nos for dado classificá-las como arte. Porém, criadas antes de qualquer formulação de conceitos estéticos, elas – e muitas outras manifestações artísticas primitivas, como as máscaras africanas, das quais Picasso se apropriou – dão a pessoas modernas, como somos, a sensação de profunda beleza e significado. Pensamos então, em um primeiro momento, que a arte moderna, ao romper as barreiras acadêmicas, possibilitou releituras e inter-relações com a arte primitiva. Os exemplos são muitos, além dos citados. Mas pensamos também em como justificar essas apropriações tão evidentes, sem referências às fontes. Não quero me colocar academicamente, como os pesquisadores fazem, mas sim em uma posição ética como artista que sou.
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É bastante evidente que o sistema da arte no qual existimos, comandado pelo mercado, autorize atitudes assim. Ao me referir a Brancusi, Marx Ernst, Picasso, estou apenas citando alguns dos mais ilustres artistas da Terra. Não apenas a arte primitiva sofre da apropriação sem crédito, esse comportamento é mais incidente do que imaginamos em uma leitura superficial, ele tornou-se uma prática comum, principalmente nas últimas quatro décadas, desde a pop art. Vejamos Rauschenberg e Warhol, somente como exemplo.
No Brasil, temos situações semelhantes. Celeiro de arte primitiva, nosso País possui um acervo enorme de sinais e formas arcaicas desde a pré-história. Como as pinturas e gravuras rupestres de várias tradições em uma variedade que se estende por todo nosso território, até as tradições indígenas presentes em desenhos, cerâmica, arte plumária de tribos como Kaiowas, Carajás, Caiapos, Erikbawas, entre tantas, e a imaginária das religiões afro-americanas de raiz Yorubá, como o Candomblé. Mas também temos outra fonte formal e temática na cerâmica popular que aqui se confunde com a primitiva, como o que fazem os descendentes do Mestre Vitalino, no Alto do Moura em Caruaru, e os índios de duas manifestações isoladas, mas com características temáticas semelhantes quanto à narrativa do ambiente e da vida que os cercam.
Sobre arte popular, eu diria que ela é a expressão simbólica do povo, marcada pela inteligência criativa autêntica das populações urbanas, suburbanas e rurais. Sendo assim, difere da arte considerada erudita por sua circulação ampla nas bases populares e por sua compreensão do ponto de vista das classes de renda baixa. O sistema de arte que impera desde o Renascimento, além dos benefícios materiais que trouxe aos artistas, legou a eles também sérias contradições sociais. Para ser considerado artista não basta talento e erudição, é preciso também status social. Pertencer à classe dominante é quase que indispensável para a vida do artista atual, pois sua obra, apelidada hoje de “produto cultural”, circula no mundo da economia de mercado. Esta é uma das razões da dominação de determinadas correntes artísticas, da negação ou fim da arte, fato admitido a partir das teorias neoliberais à atualidade e ainda da anulação do mercado do artista que vive fora dos eixos de poder. Mas sociologicamente, é uma mentira sustentada pelos senhores da economia capitalista, pois nunca se deixou de fazer arte na periferia do mundo, porque ela é, e sempre foi, uma necessidade básica da humanidade. Para justificar esse desequilíbrio e satisfazer o mercado, criou-se uma linha divisória entre arte de gente rica e arte de gente pobre, enunciada em dicotomias, como “arte erudita e arte popular”, “arte culta e arte primitiva”, “arte civilizada e arte ingênua, ínsita ou naïf”. Nesse contexto, um artista do Nordeste cuja obra foi incorporada à obra de um artista metropolitano não tem como se defender, pois seu “produto” não tem repercussão fora de seus escassos limites, e o artista que se apropriou da criação periférica é louvado como autêntico descobridor da cultura brasileira. Na verdade, ao artista de sucesso é dado o direito de lançar mão da obra dos humildes.
Exemplos emblemáticos estão em todo o Brasil. Quem, por exemplo, não encontra Bispo do Rosário ou dos bordados do Ceará na obra de Leonilson; Vitalino nas esculturas de Brecheret e nos desenhos de Tarsila do Amaral, Mestre Noza do Juazeiro; e detalhes dos entalhes de igrejas barrocas em Efrain Almeida ou Tota da Paraíba, em Miguel dos Santos? Há inclusive forte aparato teórico em defesa dessa forma de apropriação no Movimento Armorial criado e defendido por Ariano Suassuna, no qual ele toma posse da cultura do povo nordestino em função de sua valorização e divulgação. Seus sucessos teatrais têm base na literatura de cordel. Isso se tornou um hábito nacional, uma “atitude” moderna e contemporânea.
Parece muito cômodo usar a obra alheia como ponte para a realização da própria obra. A grande maioria dos artistas primitivos e toda a gama de manifestações artísticas do povo não têm nenhuma projeção, com raríssimas exceções apoiadas por poucos críticos de arte ou teóricos. O caso de José Bezerra, escultor do Vale do Catimbau, sertão pernambucano, é uma dessas exceções a partir de sua exposição em São Paulo no ano passado. O conjunto de suas esculturas na exposição poderia ser atribuído a um artista contemporâneo. Mesmo assim, artistas como ele são vistos como excepcionais, carentes, dependentes, inferiores.
A consciência artística de Zé Bezerra, em sua simplicidade, confunde-se com a compreensão de todo artista maduro e culto. Exemplo disto foi seu comentário ao ver outro escultor dar esmerado acabamento em uma peça: “Não adianta dar muito acabamento, lixar, polir, porque arte é emoção, enquanto eu tenho emoção, sei que estou fazendo arte, quando a emoção acaba a arte está pronta”.
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