A ética do espaço

"Le Shoe", instalação de Paulina Olowska, apresentada na 9ª Bienal de Istambul, em 2005/Foto: Cortesia IKSV
“Le Shoe”, instalação de Paulina Olowska, apresentada na 9ª Bienal de Istambul, em 2005/Foto: Cortesia IKSV

Enquanto o final do século XX vivenciou o fenômeno da “bienalização”, com dezenas de bienais surgindo por todo o planeta em poucas décadas, o início do século XXI vivencia a explosão das feiras de arte, que passaram a existir em praticamente todas as grandes cidades do mundo.

Tendo por questão essencial a especulação e a valorização do objeto, o que desde a arte conceitual dos anos 1960 foi posto em xeque, a onipresença das feiras para alguns especialistas, como Mari Carmem Ramírez, diretora do Museu de Belas Artes de Houston, levou as bienais a se repensarem. Em um seminário recente, parte da programação da Trienal de San Juan, ela apontou que algumas bienais se “musealizaram” como resposta a essa tendência. De fato, a 30ª Bienal de São Paulo, organizada por Luis Pérez-Oramas, em 2012, aproximou-se mesmo da maneira expográfica e panorâmica de exibir artistas, muitos deles vistos em dezenas de trabalhos.

Contudo, creio que as bienais mais recentes criaram outra estratégia para se distanciarem das feiras, que é uma relação estreita com o contexto. A primeira mostra bienal que radicalizou de fato essa ideia, ao menos em minha experiência, foi a Bienal de Istambul, de 2005, organizada por Charles Esche e Vasif Kortun. A mostra, com 54 artistas, espalhou-se por quatro prédios semiabandonados no centro da cidade turca, em vez de ocupar instituições museológicas. A Bienal tampouco buscou criar nesses lugares um simulacro de cubo-branco. Com as janelas desses espaços abertas, as obras da exposição disputavam o olhar do visitante com a deslumbrante paisagem da cidade. No catálogo, seus curadores defendiam essa proposta: “Uma ideia por trás dessa Bienal é reunir a bastante abstrata relação da arte com mudanças sociais e pessoais com as condições atuais pelas quais a cidade atravessa por um agitado processo de transformação, não muito diferente de tantos outros locais do planeta, mas que possuem aqui uma dinâmica própria”. Ironicamente, quatro anos depois, Adriano Pedrosa e Jens Hoffmann foram os responsáveis pela 12ª Bienal de Istambul, que parecia de fato uma feira.

Desde 1995, contudo, muitas foram as exposições de grande porte que não buscaram apagar o contexto no qual são realizadas. Quem segue assim são de fato as feiras, que acabam sendo os melhores exemplos, já que, basicamente, elas precisam de uma embalagem convincente e sedutora para o comércio.

Entre os casos recentes estão a dOCUMENTA de Kassel, de 2012, que abordou a situação de reconstrução da Alemanha após a Segunda Guerra, em paralelo com a destruição no Oriente Médio; a 13a Bienal de Istambul, em sua edição de 2013, que iria ocorrer apenas nas ruas e após as massivas manifestações contra a construção de um shopping no parque Taksim levou a temática para um espaço convencional; a 31a Bienal de São Paulo, de 2014, que enfocou temas candentes no Brasil, das manifestações de 2013 ao crescimento das seitas evangélicas; e a própria 56a Bienal de Veneza, que abordou aspectos de sua própria história, como as manifestações contra o golpe militar no Chile, em 1973.

Em todos esses casos, seus curadores buscaram apresentar trabalhos que abordavam mais o contexto do que questões da arte, o que constitui, por seu caráter amplo, de fato, uma tendência importante na atualidade.

Entretanto, a 14a edição da Bienal de Istambul, a cargo de Carolyn Christov-Bakargiev radicalizou essa experiência. Não só a curadora abordou o contexto como o próprio contexto se tornou parte da obra de maneira eloquente, alcançando assim uma relação ética com o espaço. Por exemplo, uma das obras da mostra está exposta na Fundação Hrant Dink, que leva o nome do jornalista fundador do periódico Agos, voltado à comunidade armênia, que foi ali assassinado em 2007, na frente do edifício.

Lá dois artistas, Ayreen Anastas e Rene Gabri, apresentam obras que abordam o trabalho de Dink. Com isso, a temática dos cem anos do genocídio armênio na Turquia, uma das linhas importantes da Bienal, não se torna apenas um conteúdo, mas de fato uma vivência, já que seria totalmente diferente ver esse trabalho em um cubo branco. Conhecer a Fundação, onde Dink trabalhou e foi assassinado, torna a mostra muito mais contundente. Distante do centro da cidade, a visita ainda obriga o visitante a um deslocamento além do itinerário turístico de Istambul.

Experiência semelhante se tem ao conhecer a casa onde Trotsky viveu, na ilha de Büyükada, passagem obrigatória para se ver o trabalho de Adrián Villar-Rojas. Em total estado de ruína, a construção se torna metáfora de fim das utopias do século XX, o que se cristaliza nos fantasmas de animais que surgem do mar, da obra de Villar-Rojas.

São apenas dois exemplos entre muitos outros de uma mostra bastante complexa, mas que aponta para uma estratégia que parte do respeito às histórias locais e uma arte que não fique falando de si mesma, mas seja capaz de pensar a cultura como um todo.


Comentários

Uma resposta para “A ética do espaço”

  1. Ótima reflexão!

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