Caminhando pelas ruas do Recife, a artista Ana Lira se deparou com uma imagem que lhe chamou atenção: um cartaz de campanha política no qual os candidatos aparecem com os olhos furados e suas bordas pintadas de vermelho. Impressionada, ela fotografou o cartaz. Logo depois, um homem se aproximou e disse que era o autor das intervenções. Indagado sobre os motivos de sua ação, explicou: “A verdade é que estou sentindo um vazio tão grande em relação aos políticos que eles me parecem espectros. A sensação que tenho é que viraram uma espécie de zumbis e que nós estamos à mercê desses zumbis”.
Lira cita esse episódio como um dos mais marcantes do processo criativo que começou na capital pernambucana em 2012, logo após as eleições municipais. A artista, que também é jornalista, andava de duas a três horas pela cidade documentando os anúncios de campanha política, abandonados pelos candidatos e apropriados pela população em intervenções anônimas. O material reunido nesse arquivo fotográfico gerou o projeto Voto!, exposto na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. Dois anos depois, a artista voltou a exibir essas obras na mostra Não Dito, que passou pelo Recife e estreia agora em Belém, no Museu de Artes Brasil-Estados Unidos, a partir da próxima quarta, 11 de janeiro.
A artista explica que a exposição, que foi vencedora do prêmio Funarte de Arte Contemporânea e tem curadoria de Pablo Lafuente, é uma expansão do projeto exibido na Bienal, apresentando 16 fotos de cartazes impressas em peças de acrílico, sete cartazes, uma lona e um projeto audiovisual, produzido pelo coletivo Crise de Representação. Além disso, também serão promovidas intervenções públicas na cidade, como a projeção de filmes na praça Batista de Campos, em Belém.
Bigodinhos, dentes pretos e inserção de frases irônicas são apenas algumas das intervenções feitas pelas pessoas comuns nestes cartazes que, de dois em dois anos, inundam as cidades. Raivosas, filosóficas ou engraçadas, essas ações revelam outros pontos de vista, como aponta Lira: “Andando pelas ruas da cidade, percebi que as pessoas intervinham nos cartazes de propaganda política e deixavam seus recados, fossem com rasgos, manchas ou escrevendo. E o fato desses cartazes ficarem muito mais tempo na rua do que o período eleitoral fazia com que eles trouxessem outro discurso que não era previsto por nenhuma equipe de marketing”.
Lira conta também que ao coletar essas propagandas políticas consegue refletir sobre a própria configuração do espaço público, “entendendo uma série de dinâmicas de como a cidade recebia esses anúncios, em que locais eles eram colocados. Por exemplo, em Recife, a maioria dos cartazes está na periferia ou no centro. Já nos bairros de elite não há tantos porque as pessoas usam estratégias para não deixar que eles sejam colados. Em Belém, eles dividem espaço com as pinturas de letreiros e as faixas. A leitura visual que se faz disso na cidade é muito mais próxima da tradição muralista no México”.
Ela ainda cita o caso de São Paulo, que, com a aprovação da Lei Cidade Limpa em 2007, possui muito menos cartazes. Para a artista, a lei “não tira apenas a propaganda, ela interfere inclusive na maneira como esse espaço público é gerenciado. Numa cidade como Recife, que não tem tantas instituições culturais fortes, a rua é um espaço de produção cultural muito potente. Caso tivéssemos uma lei da cidade limpa valendo, a interferência que isso teria na arte urbana e nos processos de intervenção seria enorme”.
Na exposição também há sete pôsteres que mostram os resquícios das campanhas eleitorais, com as marcas que os cartazes deixam nas paredes. São imagens mais abstratas que, segundo a artista, revelam a “ruína da política”, servindo como metáforas do descompasso entre a rotina dos cidadãos e o sistema político. Lira comenta que, “além das intervenções das pessoas, há a do próprio tempo. No fundo, é como se o desgaste do tempo também revelasse o próprio desgaste da política partidária”.
Para a artista, essa crise de representação põe em xeque a própria imagem dos políticos, construídas minuciosamente pelas equipes de marketing ao longo de meses de campanha. “Os cartazes são arquétipos criados para venderem a imagem desses políticos. Com esse processo de crise de representação, podemos discutir quais arquétipos estão em xeque. Trata-se de uma crise de imagem, não há como não sermos afetados por isso”, afirma.
Nesse contexto de incerteza política, Ana Lira não exime os próprios eleitores. Em cada um dos suportes onde estão os cartazes há um jogo de espelhamentos no qual o público pode ver a sua própria imagem refletida junto à dos políticos. Dessa forma, a artista reforça que a atual situação política é “um desdobramento do que nós como sujeitos representados também permitimos. A ausência de participação da sociedade civil gera lacunas que estão sendo preenchidas de maneira insatisfatória. Ainda pensamos a política de forma muito verticalizada, transferindo responsabilidades ao invés de compartilhar poderes”.
Serviço – Não Dito
De 11/01 a 24/02
Galeria de Arte do Museu de Artes Brasil-Estados Unidos
Travessa Padre Eutíquio, 1309, Batista Campos, Belém
(91) 3221-6116
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