Uma das mais antigas e consagradas linguagens das artes visuais – certamente a mais destacada no período moderno –, a pintura parece ter presença cada vez mais reduzida nas principais mostras de arte contemporânea da atualidade. Na última edição da Bienal de São Paulo, por exemplo, quem visitou o pavilhão do Ibirapuera encontrou pelo caminho mais vídeos, instalações e obras feitas com máquinas, objetos cotidianos, alimentos e até plantas do que quadros com pinturas. Chama a atenção, neste contexto, a abertura na Caixa Cultural Rio de Janeiro, no sábado, 14, de A Luz que Vela o Corpo é a Mesma que Revela a Tela, exposição inteiramente dedicada à pintura que reúne mais de 100 trabalhos da produção recente de 36 artistas brasileiros.
“Eu acho que a pintura fala tanto do mundo contemporâneo quanto qualquer outra linguagem”, afirma o artista, professor da EAV Parque Lage e curador da mostra Bruno Miguel. “Mas penso que há certo preconceito com ela hoje, talvez por uma ideia de que é preciso destruir o que já existe para construir o novo, ao invés de aprender a relacionar as coisas de maneira mais harmônica”, completa. “A ideia é mostrar como a pintura ainda comenta, sim, o mundo contemporâneo, talvez com mais comprometimento – até pelo tempo que demanda para ser desenvolvida – do que outras linguagens pretensamente mais contemporâneas ou antenadas ao momento.”
Miguel ressalta, ainda, que a compreensão do que é pintura também não é algo estanque, e que a própria exposição procura “esticar” essa percepção. “De modo algum eu quero dizer que pintura é só o que é feito sobre a tela. Pretendo mostrar que existe um pensamento pictórico que é contemporâneo e que é contaminado por outras linguagens como foto, vídeo e performance. É tudo muito híbrido, não há nada cristalizado que não seja lapidável ou arranhável”, explica. O curador dá como exemplos o seu próprio trabalho, que traz um conjunto de esculturas intitulado Estudo para Pintura de Natureza Morta em Paisagem; as obras de Rodrigo Torres feitas sobre vidro; as fotografias de Alexandre Mury de pinturas feitas sobre o corpo; e a utilização que Gustavo Speridião faz de madeiras e tecidos.
No recorte curatorial, Miguel decidiu destacar trabalhos de artistas surgidos do fim dos anos 1990 até os dias de hoje, parte de uma geração que se lançou já em tempos de internet e redes sociais. Entre eles estão, além dos já citados, Ana Prata, Bruno Dunley, Camila Soato, Dalton Paula, Gabriel Secchin, Marcone Moreira, Marina Rheinghantz e Rodrigo Martins, entre outros. Todos artistas que, com diferentes estilos, apresentam trabalhos bastante conectados às questões do Brasil e do mundo contemporâneos. “Eu acredito que a invenção do videoclipe, a MTV, a internet e o pensamento não linear, ou seja, coisas que aceleraram o tempo de apreensão da imagem e multiplicaram as possibilidades de leitura simultânea, tornaram a nossa forma de ver o mundo diferente da de outras gerações”, diz Miguel.
O curador ressalta que não se trata de um “grande panorama” da pintura do País, nem de uma escolha dos “melhores pintores” em atividade, mas da reunião de um grupo relevante de artistas que trabalham com alguns dos grandes temas selecionados pela curadoria: O indivíduo social; Narrativas outras; Em ruínas; Corpo fim; O belo e não; Imagem-margem-poesia; Habitat; Deus ex; e Transbordamentos. Em cada um destes eixos, que ocupam uma grande parede da mostra, quatro artistas comparecem com uma ou mais obras. Em meio a elas, frases curtas (“como nas redes sociais, em que se escreve com número limitado de caracteres”) são impressas nas paredes para propor diálogos entre os trabalhos e questões da história da arte e do mundo contemporâneo.
Entre as mais de 100 obras, a maioria de produção recente, temas políticos surgem com destaque, até mesmo em decorrência do contexto conturbado pelo qual passa o País. “A gente vive uma grande bipolarização e um processo de instabilidade político-social, e acho que nós, enquanto artistas, estamos enxergando, vivendo, e comentando isso de maneira crítica”. Estão na mostra, além de obras mais abstratas, pinturas de Eder Oliveira da série em que retrata jovens infratores; a visão crítica de Thiago Martins de Melo sobre temas políticos e questões indígenas; o trabalho de Caio Pacela que retrata animais em condições extremas nos laboratórios; Mariana Leico com seu universo homoerótico feminino; Victor Mattina retratando situações de crime ou tragédia; entre outros.
Por fim, sobre o título da exposição, A Luz que Vela o Corpo é a Mesma que Revela a Tela, Miguel comenta no texto de apresentação: “A sombra trêmula da caverna de Platão, a mesma projetada pela vela de um velório, que reza o corpo agora sem alma, mas ainda carregado de aura. Essa luz inconstante, mas sagrada, é a mesma que revela a tela. É uma luz que reflete o presente, relembrando o passado e aguardando que o amanhã possa ser um pouco melhor”. E ele concluí: “A pintura segue fresca. Continua falando para o próprio tempo, não é antiquada ou ultrapassada, nunca vai deixar de existir”.
Serviço – A Luz que Vela o Corpo é a Mesma que Revela a Tela
Caixa Cultural Rio de Janeiro – Av. Alameda Barroso, 25, Centro
De 14/1 a 12/3
caixacultural.gov.br
(21) 3980-3815
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