“Museu do Amanhã? Eu quero saber do agora”. A frase é de uma das várias prostitutas entrevistadas pela artista Virgínia de Medeiros. Em 2015, a baiana foi até a Praça Mauã, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, registrar o processo de modernização do local. Ali, conversou com as prostitutas que perdiam espaço devido à valorização da praça. O resultado está no vídeo Cais do Corpo, que conjuga imagens dessas mulheres dançando e falas narradas pela voz em off da própria artista.
O vídeo de Medeiros é uma das principais obras da exposição Nada Levarei Quando Morrer, Aqueles que Me Devem Cobrarei no Inferno, em cartaz na Associação Cultural Videobrasil. Com curadoria de Gabriel Bogossian e Solange Farkas, a mostra reúne trabalhos de nove artistas como Claudia Andujar, Miguel Rio Branco, Rodrigo Braga e Runo Lagomarsino.
Segundo Bogossian, uma das inspirações da exposição é a obra de Pier Paolo Pasolini (1922-1975). O diretor italiano começou a produzir logo após a Segunda Guerra Mundial, num período que se costuma chamar de milagre econômico italiano. “A agricultura crescia e muitas práticas tradicionais do campo se perdiam. Tendo isso em vista, Pasolini começou a registrar esses costumes, criando uma espécie de etnografia da face popular da Itália”, conta o curador.
Ele afirma que, guardadas as devidas proporções, é esse olhar do cineasta que norteia a exposição. “Os artistas que escolhemos para a mostra atuam como antropólogos da margem, dando espaço aos que foram excluídos do desenvolvimento econômico e do ideal de progresso”.
Esse viés etnográfico também aparece no filme do fotógrafo Miguel Rio Branco que dá nome à exposição. O vídeo, de 19 minutos, retrata os habitantes do bairro periférico Maciel, no Pelourinho, em Salvador. Gravado na década de 1980, o trabalho mostra crianças, prostitutas e cachorros entre as casas e comércios precários do local. Nas imagens, prazer e dor são faces da mesma moeda.
A diretora do Videobrasil, Solange Farkas, fala sobre o impacto da obra: “É um trabalho que incomoda porque tem sujeira, degradação. Ao mesmo tempo, há uma esbórnia, um desejo que é muito forte”. Foi essa força do trabalho que, segundo Bogossian, motivou a escolha do título da mostra: “É engraçado porque o nome desagradou muita gente, por falar de inferno, ser algo meio pesado. Mas, para mim, o filme faz uma uma afirmação da vida. Uma coisa do tipo: vou zerar meu saldo aqui no plano terreno, o resto nós acertamos depois”.
O que Bogossian chama de “pulsão da vida” aparece na série de fotos de Cláudia Andujar exibidas na mostra. Consagrada por sua luta em defesa dos ianomâmis, a fotógrafa retrata o cotidiano dos índios. As imagens, projetadas num slideshow, registram ianomâmis em momentos descontraídos, brincando e conversando no meio da mata. Ao lado dessa série, há outra imagem de Andujar de grande impacto: a obra Casulo Humano, que mostra um rito fúnebre, no qual o cadáver é colocado em um casulo que é suspenso em uma árvore, para então ser cremado.
A produção da fotógrafa também é a referência para a videoinstalação Yano-a, de Gisela Motta e Leandro Lima. A obra se baseia em uma foto de Andujar, de 1975, que registra uma maloca ianomâmi incendiada. Essa imagem é colocada pelos artistas em um retroprojetor com um filtro vermelho e a interferência de uma camada de água. Uma segunda projeção sobrepõe à imagem que resulta dessa fusão a animação de labaredas.
Entrevistada pela ARTE!Brasileiros, Motta conta que o objetivo da obra é atualizar a fotografia de Andujar: “ Queríamos reviver o momento no qual a maloca é incendiada. No fundo, essa engenhoca que criamos simula o fogo mesmo, que cada vez tem uma labareda diferente. Então você pode olhar para a imagem ininterruptamente, como se ela estivesse sempre se reconfigurando”, comenta a artista.
A questão indígena também é o tema da instalação Emboaçava, de Rodrigo Bueno. Única obra feita especialmente para a mostra, o trabalho retoma o passado da Vila Leopoldina, bairro onde se localiza a instituição. Durante o período colonial, o local foi um forte construído pelos portugueses para conter o avanço dos índios. Em sua obra, Bueno reúne madeiras antigas da região, além de elementos da cultura nativa. “Ele cria uma espécie de cemitério indígena, evocando a história do bairro”, diz Bogossian.
O artista afirma que a ideia é fazer uma “desmaterialização” do forte: “Eu utilizo madeiras antigas, grades e outros materiais que já foram limites e os coloco em posições elevadas, como se fossem flechas. Há também umas luzinhas que aparecem de vez em quando e representam esse chamado ancestral dos índios. No fundo, a obra funciona como um ritual de homenagem”.
Para Solange Farkas, abordar temas sociais e políticos, apresentando obras que trazem à tona a situação de populações ou tradições culturais que são invisibilizadas pelo chamado “progresso”, é um dos compromissos do Videobrasil. “A exposição é um gesto de tomar partido mesmo. Com tudo que está acontecendo no Brasil, me parece ser impossível fazer uma mostra sem trazer essas reflexões”, pontua.
Serviço – Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno
Até 17 de junho
De terça a sábado, das 12h às 18h.
Galpão VB | Associação Cultural Videobrasil
Av. Imperatriz Leopoldina, 1150 – Vila Leopoldina, São Paulo – SP
(11) 3645-0516
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