Exposição no Rio desnuda momento histórico

“Mário foi o maior e o melhor de todos nós”. A frase é de Carlos Drummond de Andrade, que foi chefe de gabinete do ministro  Capanema, da Educação e Saúde, nos anos 1930. Não havia um ministério para a Cultura – e era esplêndido que não houvesse, porque a cultura estava toda ali, colocada a serviço da educação pública de qualidade. Coisa pública não era o que sobrava para os rastaqueras ou os saqueadores de toda ordem. Ao redor das ideias do educador Anísio Teixeira se buscava um “amor esclarecido às coisas brasileiras”.

Foi ali, bem ali, entre as décadas de 30 e 40, que o Brasil ficou mais perto de si mesmo e criou certo “imaginário idílico da nação” por meio das ondas do rádio, unindo, pela linguagem, pela música ou pela narração esportiva, o território brasileiro. Foi bem ali, nos anos 1930, que surgiu uma nova visão sociológica da história com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. É quando irrompe a literatura de caráter regionalista com o paraibano José Lins do Rego, o baiano Jorge Amado, o alagoano Graciliano Ramos e a meninota cearense Raquel de Queiroz. Ao mesmo tempo, Drummond e Bandeira comemoram a libertação da métrica e a liberdade de uso de diversos sentidos da palavra. A arquitetura ganha traços modernistas e recupera o barroco pelo traçado de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer e pelo paisagismo de Burle Marx. Os comportamentos sociais se modificam pelo avanço das publicações como O Cruzeiro, que cria um brilhante departamento fotográfico com Jean Manzon e José Medeiros para o Brasil se olhar com outro olhar. Caymmi traz a cada palavra o valor de sua intensidade natural, como sumo fosse, e Villa-Lobos dá a cada nota musical um eco dentro de cada um de nós, brasileiros, que as então ouvíamos, fervorosos em nosso destino.

Evidente que uma personalidade como a de Mário de Andrade fulguraria neste fértil momento. Era um momento de crença. O País e seu contingente humano acreditavam em certo amanhã. Mário beliscava o que vinha pela frente ou se deixava engolfar por tudo o que pudesse atiçar sua curiosidade ou seu encanto: uma cantiga infantil aqui, uma densa obra de arte acolá. Por isso, frequentava os ateliês de Portinari e Segall, personalidades de formação oposta, tanto familiar quanto artística.

Em cartaz no Museu da Chácara do Céu, a exposição Mário de Andrade e Seus Dois Pintores: Lasar Segall e Cândido Portinari, belo trabalho conjunto da direção dos museus Castro Maya, no Rio, e Segall, em São Paulo, desnuda este momento histórico. Uso o verbo desnudar propositadamente porque, rara vez, viu-se reunida tanta obra tão importante que permitisse por a nu o trabalho artístico destes dois pintores.

Retrato de Mário de Andrade (1935), por Portinari
Retrato de Mário de Andrade (1935), por Portinari

Não bastasse colocar cara a cara os retratos de Mário de Andrade feitos por Segall e Portinari, a exposição reúne, num ambiente íntimo e aconchegante, 50 obras de arte exatamente como eram as casas e ateliês de época. A vida não era para ser exibida, como nas paredes de hoje, mas para ser vivida, como no dizer de Mário: ”Diante da vida eu jamais tenho o prazer dum espetáculo, eu vivo”.

Pois bem, eis finalmente, da forma mais comezinhamente honesta, uma exposição que não se exibe para um mercado ávido por novidades ou consumo, mas para um Brasil que precisa se rever naquilo que tem de mais denso, mais próprio, mais corpóreo. De fato, a montagem da exposição permite uma proximidade das obras de arte não apenas aos olhos mas ao próprio corpo, parecendo nos envolver como uma grande, arrebatadora e prazerosa onda do mar, fresca e viçosa, sem exibicionismos de uma sociedade de espetáculo, mas voltada, apenas, a nos aconchegar.

Pois é no aconchego e na reflexão que recuperamos a nossa história. E fazemos do olhar animador e atiçador de Mário de Andrade um belo roteiro para nossos próprios descaminhos.

*Leonel Kaz, jornalista e curador, é professor de Cultura Brasileira da PUC-RJ, e foi Secretário de Cultura e Esportes do Estado do Rio

Retrato de Mário de Andrade (1927), por Lasar Segall
Retrato de Mário de Andrade (1927), por Lasar Segall

Serviço – Mário de Andrade e seus dois pintores: Lasar Segall e Candido Portinari
Até 27 de julho
Museu da Chácara do Céu – Rua Murtinho Nobre 93 Santa Teresa – Rio de Janeiro/RJ

(21) 3970.1126



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