Quem foram as primeiras artistas renomadas do Brasil? Ao se deparar com essa questão, é comum que os nomes de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral venham à tona. No senso comum, as modernistas são vistas como as pioneiras do campo artístico, um universo antes dominado pelos homens. No entanto, antes delas, outras mulheres já expunham suas obras e lutavam por reconhecimento. Em sua nova mostra, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, o curador Paulo Herkenhoff evidencia a trajetória dessas personagens, em uma reflexão sobre o processo de emancipação feminina e a construção da historiografia.
Intitulada Invenções da mulher moderna: para além de Anita e Tarsila, a mostra reúne mais de 240 itens, entre documentos e obras que vão desde o século XVII até a contemporaneidade. A partir desse amplo panorama, o curador reforça a tese que já defendeu em outras mostras: “ A mulher não contribuiu para a arte brasileira, mas a constituiu. Seja na vanguarda, ao lado dos homens, ou um pouquinho atrás, ela sempre esteve presente”.
Sem recorrer a uma narrativa linear, a exposição está dividida em núcleos que formam uma espécie de quebra-cabeças, buscando recuperar imagens e figuras chaves desse processo. Uma das principais personagens é Abigail de Andrade (1864-1890), tida pelo curador como “ a mais importante pintora do Brasil no século XIX”. A carioca foi a primeira mulher premiada com a medalha de ouro no concurso da Escola Nacional de Belas Artes.
Em suas obras, retratava a sociedade urbana de classe média do Rio de Janeiro, pintando em pequenas telas já que, na época, era difícil que uma mulher conseguisse grandes encomendas. Defensora da causa abolicionista, ela refletia os ideais em sua obra: “Abigail representava negros, mas sempre crianças, ou seja, libertos. Ela se recusava a inserir a escravidão em suas telas, mas sim a liberdade”, afirma Herkenhoff.
Outra figura emblemática da exposição é Nair de Teffé (1886-1981), uma das primeiras caricaturistas de que se tem notícia no mundo. Teffé estudou desenho em Paris, onde começou a publicar caricaturas, linguagem totalmente associada ao universo masculino. No Brasil, retratava figuras da alta sociedade, além de políticos como Washington Luís. Suas ilustrações incomodavam, chegando a ser alvo de críticas de Ruy Barbosa.
Em 1913, casou-se com o então presidente Hermes da Fonseca, tornando-se a primeira-dama do País. No Palácio do Catete, ela também gerou discórdias por introduzir o maxixe de Chiquinha da Silva, tido como uma música popular e portanto menor, nos saraus organizados no palácio. A mostra exibe várias caricaturas feitas pela artista, além de uma série de fotos – com destaque para os registros dela dirigindo sozinha um automóvel em Viena, em um período em que o carro nem havia chegado ao Brasil.
A produção de Teffé pertence ao núcleo que o curador chama de “Modernas antes do Modernismo”. Trata-se de um grupo cuja produção questionava os parâmetros acadêmicos, mas que não participou da Semana de 1922. Para Herkenhoff, é preciso rediscutir a historiografia do período: “O modernismo de 22 não deu conta do Brasil. Ainda assim, a USP defende uma primazia paulistana quase que resumindo a modernidade ao que estava ali. É uma questão que está em aberto e precisa ser revista”, pondera.
A mostra cria assim um diálogo interessante entre as obras de artistas menos conhecidas e as de Tarsila e Anita. As duas estão bem contempladas na exposição, com desenhos, esboços e pinturas. O curador ainda apresenta uma análise do famoso texto de Monteiro Lobato, publicado em 1917, que tecia críticas fortes à primeira exposição individual de Anita.
“Dois anos antes de Lobato escrever esse texto, em 1915, foi publicado o primeiro Código Civil Brasileiro, que era muito conservador, e classificava as mulheres como relativamente incapazes e as crianças, loucos e índios como completamente incapazes. Foi com base nisso que ele escreveu a sua crítica, alegando que Anita pintava de uma forma infantil, ou seja como um absolutamente incapaz”, afirma o curador.
Representando a arte contemporânea, três artistas são o destaque da mostra: Lygia Pape, Lygia Clark e Mira Schendel. Há obras icônicas como o registro da performance O Divisor, que Pape realizou com um grupo de crianças da favela da Maré, ou ainda alguns trabalhos que compõem a famosa série Bichos de Clark. Segundo o curador, em suas produções, as três “passam dos estertores da modernidade para uma nova estética que dialoga com outras áreas do conhecimento, como a fenomenologia, a linguística e a psicanalise. Elas são, antes de tudo, sujeitos inventores”.
Abrangendo um vasto período, a exposição apresenta um amplo panorama da presença feminina na arte brasileira. Mesmo assim, o curador enfatiza que há muitas lacunas a serem preenchidas, em um quebra-cabeças que está longe de ser revolvido. “Existem muitos temas mal explorados. Por exemplo, hoje em minha pesquisa, me interessa cada vez mais a arte naif, dos ditos ingênuos e primitivos que não produziam segundo as regras acadêmicas.”, afirma.
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