Nos últimos 10 anos, mais de 30 mil escolas rurais foram fechadas no Brasil. Os dados, divulgados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), deixaram a artista Cacá Fonseca inconformada: “Assim que ouvi essa notícia na rádio, não consegui parar de pensar em outra coisa. Como era possível que eu não soubesse de uma informação relevante como esta?”
A goiana começou a pesquisar sobre o tema. Foi assim que surgiu o projeto Expedição Catástrofe: Por uma Arqueologia da Ignorância, contemplado com o edital do Rumos Itaú. De viés multidisciplinar, a iniciativa reúne dez profissionais, entre artistas, urbanistas e designers, que viajam em busca das histórias e resquícios dessas escolas abandonadas.
O grupo se dividiu por três Estados afetados pelo fechamento das escolas. Os artistas Ícaro Lira, Laura Castro e Yuri Firmeza foram até o sul da Bahia. Já Alexandre Campos, Pablo Lobato e Renata Marquez partiram para Minas. Cacá Fonseca, Felipe Britto, Glayson Arcanjo e Pedro Britto rumaram para Goiás. O projeto ainda está em andamento e, ao final, incluirá uma exposição e um livro.
Nessas expedições, que começaram em novembro de 2016, os artistas têm autonomia. Cada um cria à sua maneira. Fonseca ressalta, porém, que, em comum, todos identificam o esvaziamento demográfico de áreas rurais. “Hoje temos uma agricultura muito associada às commodities e a mecanização [dos meios de produção]. Com isso, não interessa ter pessoas no meio rural e muito menos colégios para elas estudarem”, afirma.
A artista ainda reitera que se trata de um ciclo vicioso: “Obviamente, a diminuição do número de pessoas no campo foi um dos fatores que levou ao fechamento das escolas. Porém, essa falta de oportunidades também estimula o êxodo rural”, pondera.
Um dos participantes do projeto, Ícaro Lira ressalta que se trata de uma estratégia de contenção de custos. “Não interessa ao Estado ter uma escola rural pequena no campo, com cerca de 20 alunos. O que as prefeituras têm feito é fechar essas instituições e direcionar os estudantes para uma escola maior no centro”.
Lira viajou até a Bahia em busca do que chama de “iniciativas de resistência”. Ele percorreu o sul do Estado, da cidade de Teixeira de Freitas até Arraial d´Ajuda, conhecendo escolas ligadas ao MST, ao movimento quilombola e aos índios pataxós. Ao todo, foram sete paradas em colégios que transmitem a cultura e identidade local. O artista reuniu os materiais didáticos adotados pelo professores para, posteriormente, utilizá-los em sua obra.
Durante a viagem de aproximadamente um mês, Lira percebeu como a disputa pela terra ainda é central: “Um exemplo disso é a cidade de Helvécia, que é um região quilombola. Fomos numa escola muito ativa lá, mas que estava num território totalmente visado, cercado por uma plantação de eucaliptos, monocultura muito usada para fazer o papel. A empresa que planta ali é a Suzano, uma grande multinacional que começou a comprar todas as terras da região. Há uma pressão para que as pessoas e as próprias escolas saiam do local”, conta.
Já o grupo que rumou para Minas Gerais saiu em busca dos escombros e vestígios dos antigos colégios. Em sua primeira expedição, eles visitaram Sabará e Jaboticatubas, duas cidades próximas com alto número de escolas desativadas. O artista Pablo Lobato relata a experiência: “Ainda estamos processando, mas posso afirmar que é algo absurdo, são muitos lugares completamente à deriva. E, ao mesmo tempo, encontramos crianças que precisam acordar às 4h da manhã para irem a uma escola distante”.
Em suas caminhadas, o grupo chegou até a encontrar uma senhora que vivia em uma escola abandonada. “Ela morava ali, os móveis dela estavam junto ao quadro negro, às carteiras, tudo muito pobre. E, claro, ela morria de medo de ser tirada dali. Isso me impressionou muito, até porque você começa a se sentir responsável”, comenta o artista.
Para Cacá Fonseca, que junto ao seu grupo visitou as cidades de Cavalcanti e Goiânia, as escolas rurais também apresentam visões alternativas de aprendizagem. “É uma educação que não é pautada por uma lógica de mercado. Tanto que hoje há programas de universidades voltados para a formação do professor da escola rural. Afinal, não se trata apenas de estar no campo, mas trazer abordagens próprias de um conhecimento localizado”, pontua.
Lobato também menciona esses outros saberes: “Só de passarmos alguns dias por essas regiões, conseguimos ver quais são as plantas importantes por ali. Além de ensinar o conteúdo básico, a escola rural tem uma função muito sensível que é a de estar perto de onde as pessoas vivem, transmitindo esse conhecimento da terra”.
Tendo isso em vista, o artista pretende realizar uma intervenção nos locais visitados: “Não sei como vamos contribuir com esse debate, mas não queremos ficar ali apenas contemplando as ruínas. É preciso realizar uma ação, talvez uma aula ou mesmo uma performance que leve as pessoas até essas escolas e mostre a sua relevância”.
Por enquanto, Lobato planeja voltar para Jaboticatubas e promover um encontro inusitado. Ele reunirá um senhor de oitenta anos com a sua primeira professora, que hoje já é quase centenária. Eles se encontrarão nas ruínas da escola onde conviveram. “Vamos ver no que dá”, conta o artista, com um tom animado.
Lira também pretende retornar aos locais que visitou. “Quero desenvolver o trabalho lá mesmo. No fundo, acredito que voltar aos lugares é muito mais importante do que a produção em si”. Ele enfatiza que o seu objetivo é sobretudo tratar de temas pouco abordados: “É importante levantar questões que estão submersas, ainda mais nesse contexto de perseguição aos movimentos sociais que vivemos”.
Os dez integrantes do grupo se reunirão em abril para planejar os próximos passos do projeto. A expedição pelos “escombros da educação brasileira”, como afirma a idealizadora, continuará ainda em busca de outras histórias e vestígios que, em breve, serão apresentados ao público.
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