O computador substituiu o imaginário como campo de investigação? Rachel Rose, autora da videoinstalação A Minute Ago, obra marcante desta 32ª Bienal de São Paulo, entende a arte também como um campo de trocas entre o homem e a tecnologia. A norte-americana se apropria de obras já existentes para criar uma narrativa visual fragmentada, com planos rápidos e contínuos, próprios da percepção do homem contemporâneo.
A Minute Ago é um bom exemplo da arte destes tempos de pós-produção (tratamento dado a um material, como montagem, acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras ou os efeitos especiais). Rachel resgata um filme retirado do YouTube, que mostra um grupo de banhistas em uma praia tranquila apanhado de surpresa pela mudança de tempo e sua reação à forte tempestade de granizo. Outro fragmento de obra escolhido por Rachel para compor seu vídeo é a icônica Casa de Cristal, construída em 1949 pelo arquiteto Phillip Johnson, cujo conceito básico é da Casa Farnsworth, de Mies van der Rohe, mas com diferenças como simetria e assento terra. Em imagem holográfica ele aparece dentro da “caixa de vidro” medindo o espaço com o próprio corpo. Essa casa, inspirada literalmente em um projeto de Rohe, de 1930, tornou-se um ícone da modernidade arquitetônica. A construção reina absoluta e solitária em um espaço de 50 hectares de pura natureza. O “aquário” sem paredes internas, onde apenas o banheiro tem intimidade preservada, e praticamente sem móveis, exibe o quadro Burial of Phocion, de Nicolas Poussin, de 1648, uma paisagem clássica retratada por ele, cujo enquadramento é idêntico ao da topografia do terreno escolhido por Johnson.
De posse dessas imagens, Rachel trabalha camadas translúcidas, misturando fotografia, vídeo e cinema, como autênticas “pinceladas”. A arte contemporânea desde os anos de 1990 interpreta, reproduz, reexpõe ou utiliza produtos culturais disponíveis ou obras realizadas por terceiros. Gerhard Richard, Pollock e Baselitz, pintores emblemáticos da arte contemporânea, já confessaram que, mesmo fazendo escultura, instalação ou performance, se sentem pintores. Com Rachel, a situação não é diferente. Pintora por formação, em A Minute Ago ela não trai a paleta. As camadas sucessivas de imagens transparentes, ora vindas da holografia com Johnson, ora do vídeo do YouTube, ora das fotos da Casa de Cristal, são interfaces com a pintura. Rachel potencializa a criação de novas obras promovendo as relações entre seus componentes, tendo as cores como agente ativador. Para o minimalista Donald Judd, duas cores juntas são suficientes para que uma avance e outra recue, desencadeando o jogo, para ele “insuportável”, do ilusionismo espacial. Rachel consegue esse efeito e comprova a tese de Judd publicada em seu livro Specific Objects, de 1965.
Como defende Nicolas Bourriaud, as noções de originalidade e criação esfumam-se nessa nova paisagem cultural híbrida. É como se a artista fosse um DJ selecionando objetos culturais e inserindo-os em contextos definidos. David Lamelas, artista e teórico argentino, vai além: “As obras não existem como produto final porque nunca são finalizadas”. Rachel se inspira no dinamismo contemporâneo que trabalha possibilidades visuais proporcionadas por outros instrumentos, não só o olho. Ela explora o sensorial e o fantasmático em sua produção.
Independentemente de estar ou não em uma Bienal, um trabalho tem que dar conta sozinho da apreensão do espectador. A Minute Ago magnetiza por 11 minutos ao construir uma poética virtual dotada de um coeficiente de arte que sem a ação manipuladora de imagens daria a sensação de algo “inabitado”.
Esta videoinstalação reflete sobre a produção contemporânea e suas fronteiras diluídas. Rachel se insere no grupo de videomakers que trabalha a ideia de “pós-produção”, teorizada por Bourriaud, termo técnico usado no mundo da televisão, cinema e vídeo – e aquilo que Rachel elabora ao criar pontes entre o silício e a pintura.
O interesse renovado de Rachel pelas múltiplas possibilidades da videoarte está latente em outro vídeo também exposto nesta 32ª edição, o Everything and More, instalado dois andares acima de A Minute Ago, que está no térreo. Neste trabalho o que está em jogo é a sensação de estranhamento em relação ao que está ao redor. Rachel parte de uma entrevista feita por ela com o astronauta David Wolf, da Nasa, na qual ela ouve sobre a aventura de permanecer no espaço e o momento emocionante de retornar à Terra. Enfatiza, na medida, a declaração de Wolf ao descrever sua sensação diante da imensidão do universo, da luz das estrelas, da beleza da Terra e do cheiro de grama sentido ao desembarcar, confirmando que realmente está em casa.
Mais uma vez Rachel sobrepõe planos, num jogo conceitual e técnico, reelabora imagens de esferas e líquidos em movimentos como módulos experimentais, em uma alusão à Via Láctea. Estas imagens em suas mãos são como músicas sampleadas por um DJ para chegar à sua composição. Estamos vivendo um momento de explosão do protocolo do autor, como define Bourriaud. Assim como outros artistas contemporâneos, Rachel reproduz obras do passado para desenvolvê-las com estratégias diferentes do presente. Achille Bonito Oliva, o teórico da Transvanguarda, já em 1980 previa que o artista seria um nômade circulando por todas as épocas e estilos, se apropriando deles e os reinventando.
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