Freeports: uma nova forma de preservar a arte para o futuro?

Freeport de Luxemburgo, luxo e arrojo arquitetônico - Foto: Loris von Siebenthal
Freeport de Luxemburgo, luxo e arrojo arquitetônico – Foto: Loris von Siebenthal


Há uma urgência de futuro
no sistema de arte e nesse contexto já não bastam apenas as feiras de arte, bienais, novos museus. O palco está lotado, mas o cenário acolhe novos protagonistas, os Freeports. O de Luxemburgo foi aberto em setembro de 2014, ao lado do aeroporto de Findel, com 22 mil m2 distribuídos em quatro andares e criado pelo empresário e colecionador suíço Yves Bouvier, o mesmo dono do Freeport de Cingapura, de 25 mil m2. Em Luxemburgo, no dia da abertura, 75% dos espaços para arte já estavam reservados. O edifício arrojado conta com auditório, galerias de arte que só funcionam internamente e, é claro, com caixas fortes para abrigar coleções bilionárias, supostamente protegidas dos ladrões e do fisco.

Os proprietários que desejam mostrar ou vender suas coleções podem fazê-lo em uma das oito salas de exposições de 700 m2. O projeto foi elogiado pelo governo de Luxemburgo em seu lançamento, mas foi alvo de críticas no mundo artístico. O coletivo Richtung 22, de Luxemburgo, teme que a concessão dê muitas vantagens fiscais ao depósito de obras de arte e faça com que “a cultura desapareça por detrás de um paredão de cimento e arame farpado”. São eles autores de Freeport, Cultura Segura, performance cáustica, uma sátira sobre o novo empreendimento.

Apesar do edifício, que custou 53 milhões de euros, não ser aberto ao público, e de todas as transações e informações sobre o que é depositado serem confidenciais, os dirigentes esperam que o Freeport tenha uma influência decisiva para o desenvolvimento do pequeno Estado europeu como centro de cultura e que atraia feiras de arte e galerias importantes.

No mundo contemporâneo, as ideias de espaço e lugar são cada vez mais indagadoras. Seriam os Freeports uma nova forma de preservar a arte para o futuro? Independentemente do quão problemático possa vir a ser esse tal “fantasma”, impenetrável para qualquer mortal não endinheirado, quis desvendá-lo. Conversei com Ryo Wakabayashi, proprietário de galeria em Tóquio e Cingapura, e cliente, via Christie’s, do Freeport dessa última cidade; com o inglês Thomas Galbraith, que mora em Nova York, é diretor de estratégias globais da plataforma online de leilões Paddle8; e com Sarah Thornton, escritora e crítica de arte norte-americana.

O toque de contemporaneidade dos Freeports esbarra no fato de que tudo o que está dentro deles acaba menos importante do que a sua própria visibilidade. Wakabayashi acredita que esses novos tipos de depósitos de arte se encaixam no sistema asiático de arte. “Nos últimos dez anos, o mercado chinês de antiguidades e de pinturas comprou e trouxe de volta ao país praticamente todas as obras históricas e preciosas da China, levadas para o exterior para serem comercializadas ou simplesmente roubadas. A maioria estava em mãos estrangeiras, escondida em depósitos ou em coleções privadas.” O galerista acredita que hoje já não há mais tantos objetos chineses preciosos à venda no mercado mundial, devido ao insaciável apetite por arte e à cultura nacionalista, somados ao poder aquisitivo dos chineses nestes últimos anos. “Por isso, seguindo a ordem natural, agora chegou a vez dos colecionadores chineses comprarem artes e antiguidades de outros países. Esse será seu próximo objetivo”, diz ele.

Nesse panorama, Wakabayashi vê com bons olhos as casas de leilões internacionais e também os Freeports, que têm sua razão de existir endossada como casas temporárias para manter obras internacionais de arte. “Para chineses, colecionadores e investidores, faz sentido adquirir relíquias artísticas estáveis de alto valor porque são relativamente seguras e atuam como boa opção contra as oscilações financeiras em seu portfólio de investimentos. Especialmente agora com as novas medidas que restringem as compras do setor imobiliário.”

O Freeport de Cingapura, com 25 mil metros quadrados, movimenta o circuito de arte asiático - Foto: Divulgação/Freeport
O Freeport de Cingapura, com 25 mil metros quadrados, movimenta o circuito de arte asiático – Foto: Divulgação/Freeport


Fora da zona franca (Freeport), na China, os impostos sobre compra e venda de arte ainda são muito altos, similares aos do Brasil. No entanto, se a transação ocorrer dentro do Freeport, teoricamente não há problema. “Naturalmente, para manter a situação tax free, os colecionadores terão de manter as obras no depósito indefinidamente. Como a maioria deles se preocupa apenas em investir, isto não traz problemas. Além disso, eles podem mostrar suas obras dentro do espaço ou, se necessário, com as documentações e licenças em ordem, retirá-las temporariamente para as exibirem em suas casas.” Wakabayashi não tem experiência com o Freeport chinês, mas opera com o de Cingapura, a cidade-Estado localizada no sul da Ásia. “Sou cliente deles e o sistema funciona mais ou menos desta forma.”

Hong Kong é o centro de leilões na Ásia porque a cidade inteira se move como um grande Freeport para a arte. Casas de leilões, galerias ou colecionadores de arte podem importar, exportar, vender ou comprar, manter ou lucrar com arte em Hong Kong sem pagar nenhum imposto. “A China tem esta experiência via Hong Kong, então o próximo passo é criar vários pequenos Freeports nas cidades estratégicas do país. A diferença é que as transações serão efetuadas, provavelmente, por meio de bancos chineses e não por bancos internacionais. O que é muito significativo, em vários aspectos.” Wakabayashi. O galerista acredita que os depósitos representem uma parte necessária do mercado e o sistema em algumas vezes é benéfico e, em outras, não, porque a transparência se perde.

Thomas Galbraith fala que há grande demanda por eles, mas isso não significa que sejam sempre bons para o mercado. “É muito fácil usá-los erroneamente, e talvez isso seja parte do que está acontecendo e também o porquê estão aumentando em popularidade.”

Continuidade, filiações, rupturas e escândalos financeiros já fazem parte da recente história desse empreendimento. Yves Bouvier, colecionador de arte, conhecido como Freeport King, também atua no Genebra, considerado o maior negócio de transporte e armazenagem de arte do mundo. Nos últimos meses seu nome foi estampado em jornais e redes sociais por uma transação suspeita com o bilionário russo Dmitry Rybolovlev, colecionador e proprietário do Mônaco Futebol Clube.

Além das irregularidades que podem ocorrer nos Freeports, teme-se que esses depósitos enclausurem acervos importantes e os tirem dos olhos do público, transformando esses espaços em museus só para colecionadores. Thomas acha uma pena que uma obra de arte possa vir a ser colocada em um Freeport, depois em outro e outro mais. “O trabalho ficaria perdido para a população, por um bom período de tempo.”

Professor na Universidade de Nova York, ele defende a apreciação de uma obra de arte como herança cultural. “Se um dia os Freeports se tornarem museus abertos ao público, ou puderem ser chamados como tal, o que acho difícil, seriam espaços incríveis pela qualidade de seus acervos”, diz. Thomas acredita no futuro dos Freeports enquanto houver regulação do mercado de arte numa escala global. “Creio que é melhor para os artistas, especialmente para os vivos, quando sua obra pode ser desvendada. Em inglês, há uma expressão de que gosto muito: ‘A arte aguenta o teste do tempo’. A arte deveria ser testada diversas vezes, em diferentes contextos. Gosto de apreciar trabalhos em feiras, porque isso é um teste, também em uma exposição individual ou na casa das pessoas, o que é um teste diferente.” Thomas conclui que o problema com o Freeport é que ele não é um teste. “Há muito se fala sobre lavagem de dinheiro, sonegação ou evasão de impostos e esses depósitos facilitam isso. Acredito em impostos, porque precisamos deles para construir uma sociedade civil, se bem que, às vezes, as taxas aplicadas sobre arte e propriedade são completamente irracionais.”

Com humor natural, a norte-americana Sarah Thornton vê com graça a ideia de que um colecionador que deixa seu acervo em Freeport possa exibi-lo em uma galeria de 700 metros quadrados dentro desse mesmo local. “É ideia brilhante e estou ansiosa para ser convidada para uma dessas mostras.” Animada, ela me pergunta se já estive em algum deles. Diante da minha negativa, quase gritou: “Eu quero conhecê-los! Conceitualmente são espaços muito interessantes e soam como terra de ninguém, sem nacionalidade alguma, certo? E eu também gostaria de fazer um trabalho de detetive. Quando algo acontece por detrás de portas fechadas eu quero abrir algumas dessas portas”.

A escritora lamenta a falta dessa experiência em sua vida. Ela já viu arte em muitos contextos diferentes, mas nunca em um Freeport. “Sei que muitas pessoas ricas colocam objetos valiosos nestes depósitos porque não querem que saibam o que elas possuem. Temem que o governo descubra que sejam compradoras de obras de arte, por isso não as levam para seu país de origem. Essas pessoas não querem pagar impostos sobre as obras, ou vivem em países com situação política instável e querem manter seus pertences em um lugar seguro, como a Suíça.” Sarah diz que alguns negociantes podem ter, por exemplo, centenas de Warhols mantendo-os no escuro: “Assim, eles podem até mesmo controlar a inflação sobre o preço das obras, porque criam uma sensação de raridade no mercado de arte”. Para terminar, Sarah voltou a desafiar a ARTE!Brasileiros: “Por favor, me convidem para visitar um Freeport. Eu quero ir!”.


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