Gold in the Morning

 

O que o garimpeiro da Serra Pelada tem a ver com o yuppie de Wall Street? Às vezes, diálogos impertinentes, aparentemente impossíveis, lidam com a mesma massa que circula de maneira idêntica no sistema, como demonstra Gold in the Morning, exposição do chileno Alfredo Jaar em cartaz na Galeria Luisa Strina. As obras trazem à luz as relações perversas entre a ganância do crescimento econômico e as condições humilhantes em que vive uma população sacrificada em prol do lucro internacional.

Jaar é artista plástico, arquiteto e cineasta e suas obras são instalações em que fotografias e vídeos interagem sob temas sociopolíticos. Em 1982, recém-chegado a Nova York, o chamado “umbigo” do planeta, tinha como estratégia de artista jovem, ainda desconhecido, “trazer” o mundo para Nova York. Tudo começou quando leu, em um jornal francês, uma pequena notícia de rodapé sobre Serra Pelada, onde a “corrida do ouro” fez com que mais de 100 mil homens deixassem suas famílias e marchassem para o longínquo Estado do Pará, na zona oriental da Amazônia, onde cavavam a terra com as próprias mãos à procura de pepitas. “Imediatamente murmurei: Ah, isso me interessa”, diz o artista.

Jaar vivia no Soho, no sul de Manhattan, perto de Wall Street, e não “engolia” os yuppies do mundo financeiro com seu reduzido vocabulário: dinheiro, lucro, comprar e vender ações. “Para mim era tudo muito abstrato e eu pensava que aquela gente nem sabia do que falava.”

A notícia do jornal lhe tirou o sono e, mochila nas costas, Jaar zarpou para Serra Pelada. Movido pelo senso de descoberta social do mundo, desembarcou naquele formigueiro humano como artista-repórter. Nessa mina a céu aberto, fez milhares de fotografias sobre o cotidiano daquela gente “de barro”. Durante semanas, Jaar foi testemunha da euforia e do desespero de uma multidão que enfrentava um cotidiano de perigo na cratera gigantesca. Isso tudo ocorreu há 30 anos, em 1985, mas mesmo assim as imagens contundentes de Serra Pelada permanecem vivas no imaginário das pessoas em muitas partes do mundo. O resultado desse trabalho em fotos e filmes, feitos nas encostas nuas e enlameadas, transformou-se em puro ouro.

Ao voltar para Nova York, desenvolveu um projeto desafiador que sacudiu um bairro e, depois, o sistema de arte. “Descobri que a Springstreet Station, estação de trem do Soho, ficava próxima a Wall Street. Aluguei todos os pontos publicitários da estação. Na época, o Soho, e não Chelsea, era o centro de arte do mundo.” Jaar cobriu toda Springstreet com imagens de Serra Pelada e, a cada intervalo, colocou a cotação do ouro em diferentes centros financeiros internacionais, como Nova York, Tóquio, Paris, etc., para conectar o sofisticado e ganancioso universo de Wall Street com a realidade “cabocla” do garimpo de Serra Pelada. “Essa intervenção teve uma repercussão enorme em minha vida pessoal e profissional, e me colocou no mapa da arte mundial. Fui convidado para a Bienal de Veneza, a Documenta de Kassel e tantas outras importantes exposições em todo o mundo.”

Nesses 30 anos, o projeto já foi exposto de forma diferente em diversos países, mas nunca no Brasil, o que é incompreensível. “Essa experiência em Serra Pelada foi fundamental em minha vida e me marcou profundamente pela condição social dos garimpeiros, o que sempre me doeu demais. Por isso, quando a Luisa Strina me convidou para essa exposição, eu lhe disse que era fundamental abrir com esse projeto de 1985.”

A relação entre a massa despersonalizada de garimpeiros e os índices da bolsa de ouro perturba a ponto de uma imagem parecer ser aniquilada pela outra. Tudo traduzido pelas imagens em caixa de luz, prints, instalações, vídeo, tríptico. A escala original que faz jus ao tema é muito maior, mas infelizmente em São Paulo não pôde ser executada por falta de espaço na galeria. “Então fiz assim mesmo, neste formato”, diz.

Jaar é um dos raros artistas de resistência e cada um de seus projetos é uma tentativa de entender o mundo. “Penso e também comunico ao público o que aprendo. Efetivamente, é impossível não ser político. Cada coisa que nós artistas produzimos, cada objeto, cada ideia que colocamos em circulação contém uma concepção de mundo.”

O artista chileno rejeita a etiqueta de artista político. Para ele, toda arte que responde ao mundo é crítica e tem inerentemente um viés político. “Antes, o que importava era a opinião dos artistas, dos intelectuais, dos críticos, tudo isso era a força da arte. Agora, lamentavelmente, estamos em um mundo muito diferente, a força do mercado é muito impressionante e embora alguns artistas tentem resistir a esse movimento, isso é muito difícil.” Finalizando, Jaar diz que os espaços dos museus, das fundações, das galerias, das ruas, das universidades: “São os últimos lugares de liberdade que nos restam”.


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