Aos 68 anos e com mais de 40 de carreira, Guto Lacaz vendeu apenas agora, em 2016, uma obra a uma instituição de arte. Criada há quase 30 anos, Eletro Esfero Espaço, em cartaz na exposição Situações: a Instalação no Acervo da Pinacoteca do Estado até 20 de fevereiro de 2017, integra desde o início do ano o acervo da instituição.
“Em janeiro já ganhei meu ano, com a carta do José Augusto Ribeiro, pela Pinacoteca, confirmando a compra dessa obra”, conta Lacaz em sua residência e ateliê nas imediações do Parque Ibirapuera.
Foi exatamente no parque, aliás, no Pavilhão da Bienal, que Eletro Esfero Espaço foi vista pela primeira vez, na exposição A Trama do Gosto, em 1987, organizada pela Fundação Bienal, entre a 18ª e a 19ª bienais de São Paulo. “Eu participei da 18a edição, em 1985, a convite da Sheila Leirner para realizar a Eletroperformance”, recorda Lacaz, que então pediu à curadora um espaço para apresentar um novo trabalho. Contudo, reação nada anormal diante da grande responsabilidade e visibilidade que a Bienal propicia, “me deu um branco e acabei fazendo uma sala careta”, admite agora.
Foi na próxima ocupação no prédio projetado por Oscar Niemeyer que Lacaz conseguiu compensar a participação morna no evento. A Trama do Gosto – Um Outro Olhar sobre o Cotidiano, com mais de cem artistas, entre eles Regina Silveira, Nelson Leirner, Bené Fonteles e Leon Ferrari (1920-2013), organizava-se como uma cidade, com módulos como Diversões Eletrônicas, Arranha Céu e Livraria, entre outros.
“O Antenor Lago, um dos curadores, pediu que eu fizesse uma loja de eletrodomésticos”, lembra Lacaz. O tema não era estranho a ele. Sua já conhecida Eletroperformance era realizada com eletrodomésticos, uma paixão que teve início quando estudou eletrônica no segundo grau, mas que de fato ganhou proporção nas lojas de departamento da cidade. “A Sears era minha biblioteca, era como o MoMA para mim. Lá tinha de tudo, de brinquedos bárbaros a tecnologia de ponta”, relembra com admiração.
Foi da Sears, justamente, que ele copiou a ideia para a obra de A Trama do Gosto. “Eu me recordo de ver na vitrine um aspirador de pó que sustentava uma bola plástica no ar; então eu simplesmente criei um corredor por onde o visitante passava, como se fosse saudado por várias espadas, mas eram 26 aparelhos”, explica.
Por sorte, naquela época, alguém na Fundação Bienal tinha um parente que trabalhava na Black & Decker, fabricante do eletrodoméstico, e conseguiu o empréstimo dos aparelhos. “Eu mesmo me surpreendi com a facilidade”, conta. Para disfarçar o som ensurdecedor do conjunto, ele cedia ao público um Walkman com um trecho de Thannhäuser, de Richard Wagner (1813-1883), o que dava um ar solene à visita.
Eletro Esfero Espaço foi um sucesso de crítica e público: a instalação tinha filas permanentes na mostra no pavilhão da Bienal e a curadora Aracy Amaral a selecionou para a mostra Modernidade – Arte Brasileira no Século 20, em Paris, em 1988, apresentada também no Museu de Arte Moderna de São Paulo no mesmo ano. “Cheguei na França achando que ia conquistar o mundo, mas não saiu uma linha sobre minha obra”, lembra-se da frustração. Depois de Modernidade, a instalação nunca mais foi vista pelo público, o que revela uma notável pesquisa da curadoria da Pinacoteca, já que nem galeria que o represente Lacaz possui. “Eu sou um maior abandonado”, ironiza.
Por trás da afirmação sarcástica, ele aponta, contudo, que não é através de lobby que sua obra é conhecida. Tem sido assim, de fato, desde o princípio. Ele estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, em 1974, e conseguiu se graduar na única turma que a instituição experimental formou, por conta da dificuldade em sobreviver durante a ditadura. Trabalhou com arquitetura até 1978, quando foi demitido em meio a uma das crises que o País atravessou.
Guto Lacaz não tinha formação em arte, mas criava pequenas traquitanas. Um dia ele mostrou à sua prima Raquel Arnaud, que lhe explicou: “Você está fazendo objetos”, recorda. Foi então que decidiu enviar 14 deles para a Primeira Mostra do Móvel e do Objeto Inusitado, organizada em 1978, no Paço das Artes, quando a instituição funcionava no MIS – o que voltou a ocorrer este ano –, entre eles Crushfixo, uma garrafa do refrigerante presa em uma caixa.
“Além de ganhar um prêmio, meus trabalhos ilustravam a matéria de várias páginas da revista Veja”, conta Lacaz, sobre a época em que a publicação merecia respeito.
Assim, aos 27 anos, ele foi comparado a Duchamp, sem “ter ideia de quem ele era” e decidiu que era hora de estudar arte, mesmo sem “nunca ter pensado em ser artista”. O começo foi no ateliê de Dudi Maia Rosa, com quem ele tinha aulas na companhia de Carlos Fajardo e Luiz Paulo Baravelli, entre outros.
A performance teve início em 1982, quando Ivaldo Granato convidou Lacaz junto a outros 59 artistas para, no Centro Cultural São Paulo, cada um realizar uma ação de um minuto. “Usei um toca-discos, meu primeiro aparelho doméstico. Para mim foi incrível estar no palco, com frio na barriga e adrenalina bombando.” Desde então, não parou mais. A mais recente ação, denominada Ludo-voo, é uma performance composta por 20 cenas com objetos voadores, uma das obsessões do artista.
Na prática, contudo, apesar de já ter exposto em muitas galerias importantes da cidade – Subdistrito, São Paulo, Luisa Strina e Marília Razuk – e ter participado de muitas mostras, além de ter ganho a Bolsa Guggenheim, em 1989, foi com o trabalho gráfico que ele sobreviveu de fato.
“Nunca vendi uma exposição inteira, sempre volto para casa com quase tudo. O retorno em artes plásticas é muito lento. Imagina, vendi minha primeira instalação agora, quase 30 anos depois dela montada”, resigna-se, sem perder o foco no trabalho. “Tenho três exposições prontas aqui no andar de cima de casa, mas vou esperar o vento soprar e a hora que chegar, chegou.”
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