“A história me absolverá”, disse o jovem advogado durante o julgamento. Há pouco mais de seis décadas, ele e outros 150 militantes foram presos pelo assalto ao quartel Moncada, em Cuba – quando tentaram derrubar o então presidente e ditador, general Fulgencio Batista, que deu um golpe de Estado para impedir as eleições que dariam o triunfo ao Partido Ortodoxo. A famosa frase do discurso de autodefesa, em 16 de outubro de 1953, de Fidel Castro, que anos mais tarde seria o líder da Revolução Cubana, é um dos mais importantes documentos políticos da história cubana contemporânea e, hoje, uma das 80 frases de um dos trabalhos que os artistas Maurício Dias & Walter Riedweg apresentam em Histórias Frias e Chapa Quente, na Casa França-Brasil, Rio de Janeiro.
A exposição, com curadoria de Andreas Brøgger e que em dezembro segue para a Galeria Vermelho (SP), reúne obras inéditas e recentes da dupla que comemora 21 anos de trabalho em parceria. Tendo como motor o princípio da alteridade, sua produção sempre se mostrou interessada em ver o mundo a partir do olhar do outro, de relatos das vivências geradas em encontros com personagens colocados em situação de margem ou invisibilidade em diferentes partes do mundo, como meninos de rua, porteiros, policiais de fronteira, travestis ou gigolôs. Em Histórias Frias e Chapa Quente, Dias & Riedweg mantêm o interesse em contar histórias, mas agora considerando a si mesmos como personagens possíveis para os trabalhos.
Tendo como ponto de partida suas lembranças pessoais da história mundial recente, chegaram à seleção de 80 frases ditas por políticos, artistas e figuras midiáticas, no Brasil e no exterior. Blocão (2014), realizado em parceria com a crítica Glória Ferreira e a artista Juliana Franklin, é como uma crônica dos últimos 70 anos. Apresentadas como cartazes que o público pode levar para casa, as frases formam um mosaico inusitado. Fora de uma ordem cronológica e sem referência de autoria, elas poderiam ser ditas por qualquer um: tanto por um filósofo quanto por uma socialite, uma liderança política (de esquerda ou direita) ou um apresentador de programa de auditório. Aqui, a definição padrão de História como versão única, linear e absoluta sobre o que acontece dá lugar a algo multifacetado e instável, que se redefine e se reescreve com o passar do tempo. Como previu Fidel, a História que em determinado momento o condenaria como criminoso, tempos depois o exaltaria como revolucionário.
Ocupando o espaço central da Casa França-Brasil está Cold Stories, um gigantesco cubo com 5,5 m de lado onde são projetados mais de 600 arquivos de vídeos e suas trilhas sonoras – coletados durante dois anos exclusivamente da internet – cobrem o período que vai da Guerra Fria (1944) até os dias de hoje. Entre as imagens estão trechos de séries de TV como A Feiticeira, Perdidos no Espaço, Kojak, Túnel do Tempo e Jeannie é um Gênio; os primeiros comerciais de TV para carros, geladeiras ou máquinas de lavar roupas; e eventos e discursos históricos, fatos políticos e sociais, além de imagens de conflitos e guerras, como as da construção e queda do Muro de Berlim, do movimento hippie, das guerras de Independência na África e dos golpes de Estado na América do Sul. Elas aparecem em bolas coloridas que percorrem simultaneamente, e de maneira aleatória, as faces do cubo, enquanto vão aumentando de tamanho até explodir e desaparecer, como fragmentos da nossa memória coletiva.
“Essa cacofonia de discursos leva a uma possibilidade de alteração do que está sendo dito ou compreendido. Se nosso trabalho tem um crédito político é o de desconstruir a ideia de verdade única, de um único ponto de vista”, aponta Maurício Dias. Nas laterais do cubo estão quatro baús de viagem, cada um contendo uma marionete de expoentes da Guerra Fria: Che Guevara, Mao Tsé-Tung, John F. Kennedy e Nikita Kruschev. “Editamos importantes discursos de cada um, de modo que nos vídeos que acompanham os bonecos eles parecem dizer exatamente o contrário do que disseram originalmente. Nos leva a pensar: quem manipula quem?”, explica Walter Riedweg. “Por décadas, essas figuras manipularam tantos países na Europa, na América do Sul, na África e na Ásia. Aqui, nós encontramos as quatro figuras históricas, elas mesmas controladas por uma força externa, invisível ao público”, completa o curador.
A discussão sobre história e política se desdobra nos demais trabalhos da exposição: Sob Pressão, Evidência e Chapa Quente (todos de 2014), além de Throw, no qual, pela primeira vez em 2004, Dias & Riedweg usaram imagens de arquivo e não imagens feitas por eles mesmos.
“Histórias Frias e Chapa Quente apresenta um discurso fragmentado, aberto. Cada visitante a exposição sai com uma percepção diferente na cabeça. Nos interessa abrir espaço para o senso crítico. Muitas vezes, nos tornamos soldados de uma causa que nem sabemos qual é. Isso vale para o próprio artista”, aponta Walter. “A arte passa longe do dogma. Eu vim aqui para confundir, e não para explicar, como dizia o Chacrinha. Isso é extremamente político”, completa Maurício.
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