Histórias Mestiças

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POR TRÁS DO MITO romântico da miscigenação – o processo harmonioso de mistura de raças, que estaria na origem da identidade e da cultura brasileiras – escondem-se histórias violentas de dominação, apagamento de diferenças e racismo. Confrontar, na arte, a versão eurocêntrica da história do País e iluminar a presença das matrizes indígenas e africanas na produção brasileira são partidos da exposição Histórias Mestiças, com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz, que ocupa o Instituto Tomie Ohtake até outubro. “O senso comum junta mestiçagem e democracia racial e naturaliza processos políticos e econômicos racistas e violentos. Estamos falando de mestiçagem como mistura, mas sobretudo como separação”, diz a historiadora, antropóloga e escritora. “Mestiçagem envolve inclusão e exclusão. A ideia é politizar o conceito e explorar sua ambivalência.”

Entre obras, objetos e documentos, a mostra reúne cerca de 400 peças, provenientes de 60 acervos brasileiros e europeus. Mestiça em vários sentidos, a seleção inclui obras de viajantes europeus, como Albert Eckhout, Debret e Rugendas, e de autores desconhecidos; desenhos em papel de artistas ianomâmi, Marubo e Huni Kuin; obras comissionadas, em que Luiz Zerbini, Thiago Martins de Melo e Sidney Amaral comentam passagens icônicas da história brasileira; obras modernistas e arte concreta; máscaras ameríndias e do Congo, Angola e Benim, regiões de origem de escravos trazidos para o Brasil; trabalhos contemporâneos que falam de racismo ou se relacionam à questão indígena; registros fotográficos feitos por antropólogos em tribos brasileiras; além de santos, ex-votos, mapas, flechas, tangas, instrumentos de castigo.

Com peças organizadas de forma a compor narrativas e cruzamentos de épocas e culturas, a montagem prescinde de ordem cronológica e parte de um olhar pós-colonial e não acadêmico. “Já houve exposições com arte africana e arte indígena, mas sempre tratadas como territórios distintos, segregados, hierarquizados, e nunca cruzados com a produção moderna e contemporânea”, diz Adriano Pedrosa. “Aqui, as máscaras africanas e os desenhos dos ianomâmi são novos cânones, e não algo étnico, exótico, outro.”

O princípio da pertinência narrativa e da qualidade se estende à escolha de obras “anteriormente conhecidas como arte naïf, popular ou primitiva”. “São termos elitistas e superados”, diz Pedrosa, que foi cocurador da 27a Bienal de São Paulo e curador da 12a Bienal de Istambul. “Acho constrangedor que ainda sejam usados pelas instituições. É uma vergonha que ainda hoje, no Brasil, José Antônio da Silva seja tratado como ‘primitivo’.”

Os eixos da mostra recriam campos centrais de encontro, fricção e desencontro, e recebem nomes que somam designações próprias de culturas de matriz europeia e não europeia (Mapas e Trilhas, Emblemas nacionais e Cosmologias, Ritos e Religiões, Máscaras e Retratos, Tramas e Grafismos). Na sala dedicada às cartografias, mapas de quilombos e de navios negreiros, além de uma carta dos fluxos do tráfico de escravos desenhada para a mostra com base em estudos do africanista Alberto Costa e Silva, criam o contexto onde reverberam a escultura Navio Negreiro, de Emanoel Araújo, e o objeto Black Atlantic, de Ayrson Heráclito, um frasco em que água e dendê se juntam, mas não se misturam.

O arranjo serve de antessala à grandiosa Máscaras e Retratos, pinacoteca revisitada que aproxima imagens de monarcas e escravos, artistas e etnólogos, retratados e retratistas, personagens históricos e figuras contemporâneas de relevo para a cultura negra, como Ruth de Souza, primeira atriz negra a pisar o palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, nos anos 1950, e o próprio Araújo, artista baiano que concebeu e dirige o Museu Afro Brasil, em São Paulo.

A sala é pródiga em achados. Uma imagem de Dom Pedro II entre plantas tropicais faz par com o retrato de uma mulher negra coberta de prata, pintado por autor desconhecido. Um retrato de Beatriz Milhazes com o rosto coberto por pinturas kadiwéu, em 1996, aparece ao lado de índias kadiwéu ornamentadas da mesma forma em fotos de Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro, e da pintura Autorretrato Indígena II a partir de Codina (2012), em que Adriana Varejão se faz pintar com ornamentações faciais indígenas registradas no Brasil pelo pintor português viajante Joaquim José Codina no século XVIII.

Ou, ainda, acima de um retrato em que a princesa Isabel tem o rosto coberto pelo filho, uma série pouco conhecida de fotografias de escravos, produzidas em estúdio no século XIX por Christiano Júnior, açoriano radicado no Brasil, lembra a obscuridade da produção iconográfica local que tem como tema o negro ou a negritude. “Sempre se deu mais atenção às matrizes europeias ou ao que era mais próximo delas”, diz Pedrosa.

Uma espécie de síntese das ideias por trás da exposição, a sala Encontros e Desencontros sobrepõe três narrativas diversas: a série Marcados (1981), da fotógrafa suíça Claudia Andujar, levantamento em que retrata e numera índios de uma tribo ianomâmi; 38 aquarelas do século XVIII sobre um conflito entre bandeirantes e kaingangs, no Paraná; e desenhos do ianomâmi Taniki Manippi-Theri. Já Tramas e Grafismos relaciona a abstração geométrica modernista – e a herança concretista na produção contemporânea – aos grafismos indígenas e africanos.

Emblemas Nacionais e Cosmologias recontextualiza parte da iconografia histórica nacional, contrapondo-a a trabalhos comissionados. Assim, Thiago Martins de Melo recria a invasão do Brasil, em oposição ao descobrimento cortês retratado por Pedro Américo; Luiz Zerbini afasta a primeira missa para o fundo e põe no centro da tela uma índia semiengolida por um peixe e um colonizador sobre um genuflexório; e Sidney Amaral revê a abolição, retratada na tela de Pedro Agneli “como um presente dos brancos aos negros”, na descrição de Lilia Schwarcz.

Com salas centradas, ainda, no trabalho e na espiritualidade, a mostra se desdobra em uma antologia de textos relacionados que se vai de Montaigne ao antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Ampliar a reflexão sobre miscigenação cultural não é a única ambição dos curadores. “Há, por trás de tudo, uma ideia da antropofagia como projeto incompleto”, diz Pedrosa. “Como instrumento para deglutir a tradição europeia, ela foi uma estratégia pós-colonial antecipada. Mas as matrizes indígenas e africanas ainda não foram suficientemente devoradas”.

Serviço
Histórias Mestiças
Instituto Tomie Ohtake
Até 5 de outubro
Avenida Faria Lima, 201 – São Paulo
11 2245-1900
Mais informações.


Comentários

2 respostas para “Histórias Mestiças”

  1. Avatar de Clemilde Borges
    Clemilde Borges

    Peço a gentileza de me informar onde posso encontrar sua revista da edição de agosto/14,
    aqui na zona leste. Posso adquiri-la através de sua editora?
    Agradeço a gentileza de sua atenção.
    Clemilde Borges

  2. Avatar de Homero Mattos Jr.
    Homero Mattos Jr.

    parabéns pessoal! pelo conteúdo, forma, sentido, significado… por tudo q d tão belo há nesta matéria.
    ‘Brasileiros’, grande revista.
    abração

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